Na noite de ontem, sob a imponência do Guairão, o espetáculo Encantado se revelou ao público de maneira quase ritualística, ocupando o palco lentamente, como quem se insinua no espaço antes de dominá-lo por completo. Parte da Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba, a obra da Lia Rodrigues Companhia de Danças não apenas se apresentou, mas arrebatou.
O que se viu foi mais do que um espetáculo de dança. Foi uma experiência sensorial, capaz de transformar e recriar tudo ao seu redor, como se o próprio palco se transmutasse em outro território, um lugar de encantamento e mistério. O título, Encantado, carrega em si uma ambiguidade instigante, oscilando entre a ideia de um estado de magia e a de uma entidade viva, que habita os interstícios do tempo e se manifesta diante dos olhos atentos da plateia.
Ali, naquele instante, a dança não apenas ocupava o espaço – ela o reinventava.
Sobre o palco, tecidos coloridos e estampados se desdobram como matéria viva, em uma dança têxtil. Sob mãos e corpos, tornam-se peles, asas, fantasmas, vestígios de outras formas. Os bailarinos não apenas dançam: eles gestam imagens, evocam mitos, dissolvem e recriam silhuetas. Cada movimento é um renascimento, cada cena, uma fábula de transformação incessante.
Lia Rodrigues não apenas amplia os horizontes da dança contemporânea, mas ressignifica a própria ideia de encantamento.
Há no espetáculo um encantamento que não se explica, apenas se sente. As figuras emergem como espectros de narrativas ancestrais, ecos de mitologias onde homens, deuses e animais se confundem. A cada instante, um jogo de aparências, um embaralhar de fronteiras: quem somos quando deixamos de ser o que sempre fomos? Como corpos transitam entre tempos, gêneros, identidades, sem jamais se fixarem?
A coreografia é uma alquimia do efêmero, na qual o inesperado se impõe sobre o habitual. Gestos se expandem como ondas, transformam o ar, rasgam o tecido da realidade. O humor se entrelaça ao sublime, a beleza se ergue do inesperado, e cada mutação carrega consigo o assombro do imprevisível. Encantado é um rito de passagem contínuo, onde o que é sólido se desmancha e dá lugar ao possível.
O tempo, nesse universo, escorre de maneira singular. Começa como um rio lento, pausado, permitindo que cada metamorfose seja sorvida com atenção. Mas logo acelera, arrebata, multiplica figuras em um torvelinho de aparições e desaparecimentos. O encantamento se transforma em vertigem, e o público, sugado para dentro desse redemoinho, abandona certezas e se entrega à correnteza.
Num mundo que se reconfigura após a tormenta, Encantado ergue-se como um hino à impermanência. Celebra a força do transitório, a liberdade do que não pode ser contido. Sua magia não reside apenas nas imagens que desenha, mas naquilo que desperta em quem as observa: a promessa de que o futuro pode ser tecido com novas formas, novas peles, novos sonhos.
‘Encantado’: território de resistência
O espetáculo também reflete o profundo trabalho de Lia Rodrigues na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. Desde 2004, a coreógrafa desenvolve ali um projeto contínuo, criando o Centro de Artes da Maré e a Escola Livre de Dança da Maré. Mais do que um espaço de formação técnica, esse projeto se tornou um território de resistência, onde a dança é ferramenta de transformação social.
A presença desse contexto reverbera em Encantado: na materialidade dos tecidos, na coletividade dos gestos, na potência dos corpos que ocupam a cena. Há um gesto político em trazer para os palcos centrais do país imaginários que nascem na margem. Lia Rodrigues não apenas amplia os horizontes da dança contemporânea, mas ressignifica a própria ideia de encantamento, revelando-o como força pulsante da vida em movimento.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.