Algumas histórias não precisam ser contadas em linha reta. Em certas narrativas, a emoção vem menos do que acontece e mais da forma como é contado. O escritor italiano Sandro Veronesi (de Caos Calmo), em O Colibri (Ed. Autêntica Contemporânea, trad. Karina Jannini), demonstra sua preferência por esse tipo de construção ao criar um romance que desafia a ordem cronológica e propõe ao leitor um percurso fragmentado, mas profundamente envolvente.
Publicado originalmente em 2019, O Colibrì garantiu a Veronesi seu segundo Premio Strega, o mais prestigioso da literatura italiana. A edição traduzida para o português por Karina Jannini preserva a essência dessa obra que mescla cartas, e-mails, mensagens de texto, transcrições e narrativa tradicional para compor a vida de Marco Carrera.
A estrutura do romance exige atenção. Ainda que os capítulos tragam indicações de data, o leitor pode se sentir tentado a consultar a um sumário inexistente para entender a ordem exata dos acontecimentos. Essa escolha estilística, segundo Veronesi, visa “desmantelar a tirania da cronologia”. Ele explicou, em entrevista ao site literário italiano Mangialibri, que essa abordagem permite suavizar momentos de grande dor, tornando-os menos abruptos tanto para o escritor quanto para o leitor. Ao alternar entre passado e futuro, a narrativa prepara emocionalmente para eventos marcantes e intensifica o impacto de suas revelações.
A estrutura do romance exige atenção. Ainda que os capítulos tragam indicações de data, o leitor pode se sentir tentado a consultar a um sumário inexistente para entender a ordem exata dos acontecimentos.
A trama acompanha Marco Carrera desde sua infância nos anos 1960 até sua morte, em 2030. Seus relacionamentos com a família, amigos e amores moldam sua jornada. Personagens como a irmã Irene, a amante Luisa e a filha Adele são centrais em sua trajetória, enquanto o psiquiatra Daniele Carradori exerce um papel fundamental em ajudá-lo a compreender suas próprias dores. Marco se vê como um sobrevivente, alguém que atravessa tragédias e segue em frente, mas, como aponta Luisa em uma carta, ele se protege tanto que evita mudanças. Ela o compara a um colibri, que gasta toda sua energia apenas para permanecer imóvel.
O apelido surgiu na infância, dado por sua mãe devido ao crescimento lento de Marco. Criado em Florença, ele viveu uma infância feliz, mas alheia à infelicidade dos pais. Probo, um engenheiro metódico do norte da Itália, e Letizia, uma arquiteta de espírito livre do sul, eram incompatíveis. Enquanto Giacomo, o irmão mais velho, também se refugiava na alienação, Irene, a irmã do meio, observava tudo e tentava manter algum controle sobre a família. Seu suicídio, em 1981, é um dos momentos mais marcantes do livro. O episódio ocorre na casa de veraneio da família, na praia de Bolgheri, e é relatado de forma devastadora por Veronesi. O título do capítulo, “Gloomy Sunday” (1981), faz referência à canção húngara dos anos 1930, conhecida como a “canção do suicídio”, e favorita de Irene em uma versão punk de Lydia Lunch.

O impacto da morte de Irene reverbera por toda a vida de Marco, destruindo sua relação com Giacomo, que se muda para os Estados Unidos. Marco tenta se reconectar ao longo dos anos, enviando e-mails que nunca são respondidos. Em um deles, escrito em 2009, ele desabafa: “Não sabíamos nada sobre ela, Giacomo. Ela sabia tudo sobre nós, mas nós não sabíamos nada sobre ela.”
A perda e o luto permeiam O Colibri. Outra grande tragédia na vida de Marco, mencionada em um e-mail de 2012 com o título “Ajuda”, revela sua vulnerabilidade mais crua. A narrativa então se lança em um dos momentos mais intensos do romance: um capítulo que, no original, contém quase 2 mil palavras sem um único ponto final, representando um fluxo de pensamento angustiado e ininterrupto.
A força narrativa de Veronesi é notável. Seu estilo fragmentado exige do leitor uma disposição para montar o quebra-cabeça, mas recompensa com uma experiência literária rica e comovente. O Colibri não é apenas um romance sobre perdas e sobrevivência, mas também sobre a resistência emocional e a complexidade dos laços humanos. A forma como a história é contada importa tanto quanto seu conteúdo, e é nesse equilíbrio que Veronesi brilha, oferecendo um romance que ressoa muito além de suas páginas.
O COLIBRI | Sandro Veronesi
Editora: Autêntica Contemporânea;
Tradução: Karina Jannini;
Tamanho: 336 págs.;
Lançamento: Abril, 2024.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.