Da noite para o dia, literalmente, o cabeleireiro e artista de rua Ricardo Correa da Silva recuperou seu nome e a sua dignidade. Seu perfil, escrito pelo jornalista Chico Felitti e publicado no BuzzFeed, seria compartilhado milhares de vezes no Facebook e o assunto estaria entre os mais comentados em um sábado, no final de outubro de 2017. Àquela altura, Ricardo já não era mais o Fofão da Augusta, figura mitológica de São Paulo, e passava a ser chamado – pela primeira vez em muitos anos – pelo seu próprio nome.
Como um plot twist amargo, dois meses após a publicação, Ricardo morreria em um hospital público paulistano. A sua história não, continuaria viva e ganharia novos capítulos. Felitti terminou de contá-la em Ricardo e Vânia (leia a resenha aqui), biografia lançada em fevereiro pela Todavia, e que resgata o amor entre o cabeleireiro e Vânia Munhoz, mulher trans que viveu com o cabeleireiro por oito anos, em uma relação conturbada, catártica e intensa.
Chico Felitti, que prepara um livro infantil e mais uma biografia, conversou com exclusividade com a Escotilha e contou um pouco sobre a sua relação com Ricardo e Vânia e, claro, a respeito do processo de apuração para criar o perfil e o livro.
Escotilha » Você conta no livro que o Ricardo sempre foi um personagem que te interessou. Você pediu uma entrevista e ele recusou. Mesmo sem nunca ter tido uma conversa mais longa, o que fascinava você no Ricardo?
Chico Felitti » Eu não sabia exatamente. Eu não posso negar que era a aparência dele – algo que me chocou muito –, mas a minha história com o Ricardo é muito a minha história com São Paulo. Eu o vi pela primeira vez na primeira semana que eu tinha me mudado para São Paulo, quando eu tinha 17 anos. Eu estava na Rua Augusta com uns colegas de faculdade – eu tinha acabado de começar a faculdade – e vi aquela figura. O rosto dele era muito modificado, era muito diferente, e perguntei quem era e todo mundo que era de São Paulo disse: “ah, você não conhece? É o Fofão da Augusta”. E cada um tinha uma versão diferente da vida dele, de quem ele era.
Eu fiquei muito curioso e tentei por 13 anos falar com ele, esporadicamente, nas vezes em que a gente se cruzava, mas sem conseguir. Era uma questão de curiosidade mesmo. O sentimento que me motivou foi a curiosidade, eu queria tentar entender, perguntar se ele se achava bonito, se tinha sido ele mesmo quem fez aquilo com o rosto, se gostava do resultado, se gostava de se olhar no espelho. Mas o Ricardo nunca me deu essa abertura até o dia da Páscoa de 2017, que foi quando começou a apuração dessa matéria.
Desde o primeiro momento, percebemos que você está envolvido com o Ricardo, que ele não é só um personagem. Você sentia que ele aceitava você como amigo?
Para alguém reservado como ele e que nunca tinha falado [da sua própria história] com ninguém – e depois eu fiquei sabendo de vários jornalistas que tinham tentado conversar com o Ricardo –, só o fato de ter se aberto e recebido a gente na pensão em que ele morava já é um tipo de amizade. Talvez, esse fosse o máximo de amizade que ele pudesse dar a alguém.
E eu considero que sim, que ele tenha deixado a gente se aproximar mais que qualquer outra pessoa.
O sentimento que me motivou foi a curiosidade, eu queria tentar entender, perguntar se ele se achava bonito, se tinha sido ele mesmo quem fez aquilo com o rosto, se gostava do resultado, se gostava de se olhar no espelho.
Uma coisa que sempre incomodou você foi chamarem o Ricardo de Fofão.
Eu acho que se o livro e a matéria têm um intuito – e o jornalismo não deveria ter intuitos – é passar a mensagem de que todo mundo tem direito de ter um nome. Tanto que o título do livro são dois nomes e cada capítulo tem o nome das pessoas mais relevantes do capítulo. Quando a pessoa não conhecia nada da história e se referia a ele como Fofão da Augusta, tudo bem, porque uma cidade inteira fez isso por 30 anos, mas caso a pessoa tivesse lido [o perfil] e tivesse tido contato e não atinado que meio era essa a moral [de devolver a dignidade do Ricardo], eu confesso que ficava um pouco triste, um pouco frustrado.
Para mim, se existe uma moral em mostrar a história alguém que foi marginalizado a vida inteira, é aproximar, mostrar o que essa pessoa tem de parecido com a gente. E isso passa muito pelo direito a ter um nome, que foi tirado dele por muito tempo. Com a Vânia é o contrário, ela se mudou. Ela se deu muitos nomes no decorrer da vida. Cada vez que ela criava um personagem para se prostituir e mudava de nome – o que aconteceu sete vezes – era também uma reinvenção. E vem disso o encontro das duas histórias, que são histórias de nomes.
Depois da reportagem publicada, Ricardo deixou de ser o sujeito anônimo que vagava pelo centro de São Paulo e ganhou uma identidade. Como ele agia diante dessa espécie de fama?
Ele amava. Ele adorava. Era como se fosse um papel que ele tinha que ter desempenhado a vida inteira, como se a vida toda fosse um ensaio e aquele momento fosse o momento dele. E foi do dia para a noite. A matéria foi publicada numa sexta à noite – eu fiquei com muito medo do que pudesse acontecer com ele, por a matéria revelar que tinha dinheiro no banco de uma herança e não ia buscar e que alguém mal-intencionado pudesse se aproveitar da sua fragilidade – e fui fazer companhia para ele no sábado, doze horas depois da publicação. Todo mundo começou a chamá-lo de Ricardo, pedir selfie, dar dinheiro, parabenizar. E ele estranhou zero isso. Ele estava superdesenvolto, estava adorando.
Você sabe se alguém chegou a tentar alguma aproximação para se aproveitar do Ricardo?
Nem deu muito tempo. O Ricardo faleceu dois meses depois da publicação da matéria. Pouco antes de ele falecer, uma pessoa do Ministério Público procurou a gente e família dele e explicou que existia uma ferramenta jurídica – como se fosse um tutor, alguém que pudesse administrar o dinheiro do Ricardo com anuência da família para investir esse dinheiro em uma vida para ele. Poderia um salão, um lugar com um cuidador, uma cuidadora.
A família estava começando a aventar isso, quando ele faleceu. O dinheiro ainda está lá. E ele tinha uma segunda herança. Depois que a matéria saiu, a mãe morreu e ele herdou alguns imóveis. A partilha ainda está sendo feita, os irmãos ainda não tiveram acesso a esse dinheiro, que está depositado em juízo.
Você comenta em outra entrevista que quando as pessoas falavam com ele, davam dinheiro, o Ricardo dizia algo como “eu mereço”. É isso mesmo?
Quando era elogio, ele dizia mesmo “eu mereço”. Teve uma pessoa que disse: “olha, eu também sou cabeleireiro, eu também trabalho com beleza. Você é uma inspiração muito grande para mim e merece todo o reconhecimento do mundo”. O Ricardo riu e falou com a voz dele, que era uma voz fina: “é querido, eu mereço mesmo”. É engraçado porque foge completamente do óbvio, você espera que a pessoa simule uma falsa modéstia. É maravilhoso.
A gente vive em um país dividido. Há uma guerra fria tupiniquim diariamente. Como Ricardo e Vânia pode ajudar a humanizar aqueles que achamos que são diferentes mas, não raras vezes, são iguais a nós, mas são ou estão marginalizadas?
Olha, eu acho que se uma pessoa se sentir próxima e sentir conectada com a história de qualquer personagem ou capítulo do livro eu acho que já é uma felicidade profissional muito grande para mim. É como você disse, são pessoas que estão marginalizadas por várias razões: por ser LGBTQ, por estar em situação de rua, por ser pobre. E o que a gente tende a pensar, numa lógica mais preservacionista, é na diferença: aquela pessoa é muito diferente de mim e, por isso, ela está nessa situação.
Às vezes, você só contar a história dessas pessoas [em situação de vulnerabilidade] já é aproximar, tentar achar um território comum. Muitos leitores escreveram para mim dizendo isso, contando que tinham medo do Ricardo, que achavam ele uma coisa assustadora e tal, mas no final tinham passagens da história desses leitores que eram muito parecidas com a dele.
Apesar de toda essa empatia, existe ainda uma certa resistência.
Claro, existe resistência, um estranhamento e até uma negatividade. Teve gente que me escrevendo perguntando: “por que você está contando a história de uma puta e de um mendigo que fez aquilo com ele mesmo? Por que você não está contando a história de gente que vale a pena?” Existe um conservadorismo muito e uma das facetas da discriminação é não falar do assunto. É marginalizar pelo silêncio.
É o que acontece com as profissionais do sexo brasileiras na Europa. Por que não existe ainda no Brasil uma grande reportagem sobre os milhares de brasileiros que vão para a Europa para se prostituir? Porque talvez o assunto não seja tido como digno. E quando sai algo é na página policial ou só sai quando se mata alguém ou existe um crime. Nunca sai: “vamos contar a história dessas pessoas”. Talvez esteja acontecendo uma mudança narrativa no jornalismo e na literatura que é bem-vinda até por uma demanda do público por uma diversidade de histórias. Quem sabe eu esteja sendo só otimista demais.
Um dos trechos mais comoventes do livro é quando o Ricardo fala para a Vânia que ela é o amor da vida dele. Ela tinha dimensão da sua importância na vida do ex-parceiro?
Tinha plena consciência e era recíproco. Por mais que ela tenha fugido, por mais que ela tenha terminado o relacionamento, a Vânia ainda considera ele o grande amor da vida dela. Até por mais que ela seja muito ressentida pela questão do silicone – e ela responsabiliza muito o Ricardo por ter injetado silicone no rosto. Ela diz que era muito jovem quando começou, que tinha 17 anos e não sabia o que estava fazendo.
Por mais que ela tenha muitas ressalvas, ela ainda considera o Ricardo o grande amor da vida dela. Muitas ressalvas e muitos homens, porque ela namorou bastante.
Ricardo e Vânia tem passagens engraçadíssimas, como a do strogonoff, quando o Ricardo, muito pobre e faminto, se senta no restaurante conforme mandam as normas de etiquetas, mas reclama do tamanho da porção.
Ele era muito engraçado. Vendo de fora, em um primeiro olhar, parece um mundo de muito sofrimento – e de fato é muito sofrimento –, mas ninguém consegue aguentar sofrimento o tempo inteiro. Então, acaba brotando um pouco de humor, tanto nos amigos do Ricardo e nas amigas da Vânia. Acho que você se habitua a esse sofrimento e acaba tendo muito humor. A vida da Vânia é muito bem-humorada.
Essa cena [do restaurante] foge completamente do clichê. Você acha que a pessoa vai ficar lá, grata, e ele vai e reclama.
Dentre essas contradições do lugar comum, o Ricardo tinha uma ligação muito forte com a cultura. Ele falava em francês…
Sim, tem muita cultura pop, não só a erudita. É muita gente para ligar [os pontos]. Tem muitas referências que eu não conhecia e fui procurar por conta dele.
Isabel, a sua mãe, é uma presença constante durante todo o livro, se tornando – até que sem que querer – um personagem dentro da história. Qual a importância dela em todo o processo de apuração e reconstrução da vida do Ricardo?
Ela é essencial, é mais que um personagem. Eu acho que deveria ter assinado o livro comigo, ela é que não quis. Por exemplo, é ela quem descobre um comentário obscuro na internet, que não aparecia no Google, de que o Ricardo era de Araraquara. Ela me manda o link e a gente descobre a existência do Marcelo [irmão do Ricardo]. Não é só o acesso que o Ricardo nunca tinha me dado – e deu no momento em que a confundiu com a Edna [uma tia] –, mas teve muita apuração que foi dela.
Falando em Araraquara, a cidade só reconheceu o Ricardo depois que morreu.
A relação mudou completamente. Não sei se a cidade inteira, mas existem vozes que são muito defensoras e se apropriaram muito positivamente. Tanto que o SESC de Araraquara me convidou para falar sobre o que é ser LGBTQ em Araraquara.
O Ricardo passou a adolescência lá e tem personagens, como a Alessandra Ravani, que estão na cidade até hoje, que viveu aquilo e ainda vive. E acho que isso não é muito discutido. Acho que deu uma chacoalhada. Acho que não é a cidade inteira – ainda tem um setor que negaria conhecê-lo, como aconteceu na primeira visita –, mas tem quem defenda que é uma boa história e que tem que ser contada.
O Ricardo e a Vânia – durante os passeios de bicicleta pela cidade, os dois supermaquiados – foram também a inspiração para que muita gente se descobrisse, não?
Isso me comove muito. A Alessandra Ravani é uma dessas pessoas. Ela disse que conheceu eles e começou a sentir que o sentia era possível. Foi daí que ela começou a alimentar o sonho de ir para a Itália para um dia voltar da Itália. Ela só queria ir para poder voltar da Itália, que é uma coisa meio Tieta, que volta por cima. Isso é muito representativo, de quanto a diversidade pode mudar a vida de uma pessoa.
Acho que é ela que comenta que tinha o sonho de ir para a rua. A gente sempre pensa que a pessoa se torna prostituta por falta de escolha, mas, na verdade, a prostituição foi uma escolha dela.
Existe toda uma cultura. A gente nunca analisa, culturalmente, o quanto no universo em que você mora aquilo é uma realidade e, talvez, a melhor escolha. Às vezes, é um dos poucos caminhos a se trilhar. É essa complexidade da vida real que eu amo, não é só a pessoa vai fazer isso para não passar fome. Às vezes, isso é o que todas as amigas dela fazem e acaba sendo uma escolha.
Em uma crítica para o Valor Econômico, o Michel Laub notou a relação entre o seu perfil e os textos do Joseph Mitchell. Essa é uma influência consciente?
Contando a verdade, eu o conhecia de nome, mas não tinha lido antes de entregar a matéria, felizmente. Quando eu entreguei o perfil, o meu editor do BuzzFeed disse: “isso é uma versão muito atual do Joseph Mitchell”. E só aí eu fui ler. Acho que se eu tivesse lido antes, eu talvez tivesse me intimado, porque é muito bom.
Sempre que eu me deparado com uma coisa que é muito boa, tenho duas reações. A primeira é uma gratidão enorme, uma emoção enorme. E a outra é um sentido de pequenez. Você fica se sentido inútil, ainda mais com um tema tão próximo. Foi bom eu não ter lido antes, poderia ter plantado uns grilos na minha cabeça.
É essa complexidade da vida real que eu amo, não é só a pessoa vai fazer isso para não passar fome.
Algo que chama bastante a atenção é o cuidado que você teve em averiguar se os entrevistados gostariam mesmo de sair no livro, algo que não é muito comum no jornalismo, principalmente, o factual. Esse zelo pelos personagens é algo do seu modus operandi ou você tomou essa preocupação maior com o Ricardo?
Eu acho que se adapta mais a essas histórias muito longas, muito profundas e envolvimento nesse nível. Eu entendo o manual de jornalismo de grandes veículos que desaconselha a compartilhar o material com o personagem antes de ser publicado ou consultado várias vezes. A regra é clara: a pessoa te disse aquilo sabendo que era uma entrevista, ela nunca mais pode retirar.
Só que no meu caso não era um furo, era a história de algumas pessoas, que muitas vezes não têm consciência de que pode ser a publicação de algo assim. Acho que valia a pena essa troca. Teve gente que me falou coisas na matéria e que eu retirei no livro. A sinceridade é o que vale mais. Eu retirei uma informação sobre o Carlos [amigo do Ricardo] porque ele ficou magoado quando viu publicado. Por mais que tivesse me contado em on [informação que, em combinação prévia, pode ser divulgada], ele achou que pudesse ter um efeito prático ruim na vida dele. Não era um fato essencial, então, eu tirei. Nós não estamos aqui para piorar a vida de ninguém.
O grande exemplo dessa troca, desse diálogo, dessa troca entre o jornalista e a fonte, é o caso da Vânia. A família dela não sabia que ela era prostituta, mesmo estando há 30 anos em Paris. Eles desconfiavam, mas ela nunca disse abertamente. A gente teve umas 40 conversas sobre: “Vânia, vai ser publicado que você foi presa e inocentada, acusada de tráfico internacional de pessoas. A sua família vai ler isso, sua irmã vai ler isso, seu sobrinho vai ler isso”. E ela foi dando ok, mas sempre checando com a fonte.
Viver com mentiras é um fardo. Ela queria tirar esse peso das costas dela e deu supercerto. A família da Vânia foi ao lançamento, foi muito emocionante.