É praticamente impossível, nos dias de hoje, encontrar uma discussão sobre polarização política, radicalização e autoritarismo sem que alguém inevitavelmente mencione 1984. Recorrer às figuras eternizadas pela obra para justificar um argumento político (como o Grande Irmão, a Polícia do Pensamento e neologismos orwellianos como duplipensar) é um dos artifícios mais básicos e repetitivos nos debates políticos da era digital.
Independentemente do próprio viés, qualquer leitor é capaz de reconhecer que a obra de George Orwell é um clássico literário e que não faltam motivos que justifiquem sua permanência no imaginário coletivo. Ler 1984 é uma dolorosa experiência psicológica, graças à paciência do autor que constrói, aos poucos, um efeito de tensão que aprisiona o leitor lentamente, em angustiante sincronia com o cerco que se fecha em torno do próprio protagonista.
De certa forma, mais do que uma alegoria política ou distopia literária, 1984 é uma narrativa de horror existencial e psicológico extremamente efetiva. O escritor tece esse efeito com imensa meticulosidade e atenção dedicada a cada detalhe da vida individual e coletiva sob o controle da fictícia superpotência da Oceania (território do qual, curiosamente, o Brasil faria parte).
Contudo, as razões pelas quais o livro dominou a lista dos mais vendidos na Amazon americana no mês de janeiro (e em diversos outros países) são muito diferentes desta breve lista de suas qualidades literárias.
Reducionismo e má compreensão
Nas últimas semanas, o mundo assistiu estarrecido aos acontecimentos nos Estados Unidos, em que uma manada ensandecida de apoiadores do ex-presidente Donald Trump invadiu o Capitólio na tentativa de reverter os resultados eleitorais. As consequentes represálias contra Trump por parte das grandes companhias de tecnologia, especialmente o Twitter e o Facebook, bastaram para que se iniciasse a enxurrada de comparações entre o cenário atual dos EUA e a Oceania de “1984”.
Independentemente do próprio viés, qualquer leitor é capaz de reconhecer que a obra de George Orwell é um clássico literário e que não faltam motivos que justifiquem sua permanência no imaginário coletivo.
Há décadas, grupos reacionários utilizam-se dos neologismos orwellianos da forma mais simplória e reducionista para descrever o discurso de seus adversários políticos. Atualmente, o próprio termo “orwelliano” vem sendo utilizado indiscriminadamente para descrever qualquer tentativa, por mais que justificada, de frear o avanço de grupos extremistas como supremacistas brancos e ultranacionalistas.
Porém, uma leitura mais aprofundada (e um pouco de conhecimento básico sobre a vida e as opiniões políticas do autor) mostra que o livro não se trata de uma ácida crítica a toda e qualquer política progressista, e sim de uma crítica ao autoritarismo (especificamente, o autoritarismo stalinista).
De fato, as incontáveis comparações do contexto político atual com o mundo distópico descrito em “1984” são tão recorrentes que esvaziam o texto de sentido; referem-se não às palavras escritas por Orwell ou aos pensamentos e falas de suas personagens, mas a conceitos deliberadamente deturpados, distorcidos por meio de um jogo de telefone-sem-fio entre sucessivos não-leitores da obra a ponto de adquirirem um completo novo significado, absolutamente desconectado da mensagem do livro e do autor.
A reescrita da realidade
Para o leitor atento, que busca compreender de fato o funcionamento dos sistemas descritos por Orwell, torna-se evidente que termos como duplipensar e o processo deliberado de contínuo apagamento da história não são características do progressismo social e sim elementos fundamentais dos principais movimentos conservadores contemporâneos, como o bolsonarismo, o trumpismo e o olavismo, amplamente apoiados em notícias falsas, negacionismo científico, revisionismo histórico e teorias da conspiração manufaturadas que vêm se multiplicando em ritmo alarmante a cada dia.
Há uma cena emblemática em 1984 em que o protagonista Winston Smith comparece a um comício em praça pública em que um alto oficial do Partido discursa contra o grande inimigo de toda a Oceania, a superpotência rival da Eurásia; porém, no meio da cerimônia, o inimigo muda e passa a ser o território da Lestásia.
O orador conduz a transição sem titubear e a multidão sequer parece perceber a mudança; o importante não é que o inimigo do momento passa a ser Lestásia, mas que Lestásia sempre foi o inimigo. A coexistência desses dois pensamentos antagônicos e contraditórios, igualmente aceitos como reais, é o cerne do duplipensar orwelliano.
Cenas semelhantes se repetem no debate político atual. Meras horas após o ataque ao Capitólio, formadores de opinião conservadores já alegavam tratar-se de uma operação secreta conduzida por antifascistas disfarçados –– apesar de terem incentivado a mesma invasão durante semanas.
No Brasil, o governo que tanto desdenhou da pandemia hoje diz que nunca o fez. O governo mente, sabe que mente e ao mesmo tempo parece acreditar no que diz. A militância, por sua vez, é capaz de aceitar simultaneamente que a pandemia não existe e que Bolsonaro tem feito um excelente trabalho para enfrentar essa mesma ameaça inexistente.
Em conclusão, esperar que os citadores compulsivos de Orwell realmente dediquem tempo à leitura de sua obra pode ser demasiado otimista. Só nos resta acreditar que o futuro que nos espera seja mais lúcido e brilhante que o mundo de Winston Smith
1984 | George Orwell
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner;
Tamanho: 416 págs.;
Lançamento: Julho, 2009 (atual edição).