A ascensão de Donal Trump ao poder nos Estados Unidos tem se revelado uma surpresa em muitos aspectos, inclusive na literatura. Como reflexo imediato da posse do magnata, o escritor George Orwell (1903 – 1950) despontou na lista de mais vendido com os livros 1984 e A Revolução dos Bichos, ambos sobre totalitarismo e os regimes despóticos.
De acordo com o site Publishnews, Orwell, em especial os livros citados, impulsionou a lista dos mais vendidos de ficção em 13% na primeira semana de fevereiro. Em um cenário ainda mais impressionante, no caso os EUA, as histórias de Winston Smith e do porco Napoleão cresceram 10.000%, chegando inclusive ao 1º lugar na Amazon.
Na onda, a Companhia das Letras lança ainda em abril o volume de ensaios O que é o fascismo? e outros ensaios. Parte do interesse do público por Orwell é fruto do emparelhamento entre a realidade – ou sua interpretação – e o universo criado pelo autor que, com um olhar arguto e crítico, conseguiu reproduzir absurdos com um toque quase quiromântico. O que, até anos atrás, era visto como ficção distópica, parece ter se tornado real, ganhado as ruas.
Questões como a pós-verdade, por exemplo, que já eram exploradas em 1984, influenciaram a identificação.
Questões como a pós-verdade, por exemplo, que já eram exploradas em 1984, influenciaram a identificação. Recentemente, Trump mencionou um atentando que nunca existiu e, como é de se esperar, culpou a mídia norte-americana pelo erro. Os fatos alternativos que o Grande Irmão cria na obra de Orwell se assemelham muito ao que vemos estampado nos jornais como sendo a pós-verdade.
Palavra do ano
A questão talvez seja a escolha da pós-verdade como a “palavra do ano”, em 2016, pela Universidade de Oxford. Se pensarmos com calma, estamos em passos para o futuro, já que a palavra de 2015 não era uma palavra, e sim um emoji. O futuro, claro, pode ser nebuloso e, se houver sorte, Orwell e Aldous Huxley (1894 – 1963) estarão enganados. Sorte talvez mereça ser a palavra de 2017.
“‘Pós-verdade’ deixou de ser um termo periférico para se tornar central no comentário político, agora frequentemente usado por grandes publicações sem a necessidade de esclarecimento ou definição em suas manchetes”, explicou a entidade à época da divulgação da escolha. No todo, a questão é muito delicada.
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O processo político e, por sua vez, eleitoral se transformou um ninho da pós-verdade, cultivada em vários lugares do mundo. Ninguém passa incólume. A questão está mais delicada agora. Semanas atrás, o portal Plus 55 publicou um manual contra as notícias falsas assolam o país. O diagnóstico, tardio mas necessário, aconteceu inicialmente após uma matéria publicada na Folha, na qual eram denunciados os sites suspeitos de propagar notícias falsas.
Não que quem acesse esse tipo de “noticiário” não tenha dúvidas sobre a veracidade dos fatos, porém, é mais fácil estereotipar o adversário, fazê-lo carregar uma pecha que, talvez, não lhe coubesse. Esse processo faz parte da cultura da hipérbole, do exagero que trazemos à tona todos os dias ao dicotomizar tudo o que nos cerca. É, necessariamente, obrigatório escolher um lado e defendê-lo até às últimas consequências. A máxima de Voltaire, “não concordo com o que dizes mas defendo até a morte o direito de o dizeres”, cai por terra. É preciso calar o outro.
O QUE É O FASCISMO? E OUTROS ENSAIOS | George Orwell
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Paulo Geiger;
Quanto: R$ 34,90 (160 páginas);
Lançamento: Abril, 2017.