No momento em que Francis Ford Coppola adaptou Coração das trevas para o cinema e criou uma das obras mais épicas da sétima arte, Apocalypse now prefigurou em Marlon Brando a ideia máxima do horror e da barbárie. Da mesma forma que no clássico de Joseph Conrad (1857 – 1924), o Kurtz de Coppola não é um homem, mas uma ideia, a metáfora assustadora da natureza humana e a sua flutuação entre a lucidez e a loucura, o silêncio e o ensurdecimento e o racionalismo e a brutalidade.
Daquilo que poderia ser uma mera síntese, Conrad faz do livro uma expansão do entendimento humano, que coloca seu protagonista, Marlow, numa espécie de perpétuo xeque-mate frente ao absurdo. Entretanto, não é possível deixar de notar que Coração das trevas é uma obra do seu tempo, um retrato do colonialismo e da visão europeia da África – como Kipling (1865 – 1936) e Os Livros da selva, em que Mowgli personifica a estética do bom selvagem (algo que permearia até mesmo a literatura brasileira, principalmente, em O Guarani, de José de Alencar (1829 – 1877)) – que reflete um olhar bastante romântico e idealizado do desconhecido. Trataremos, entrementes, dessa estética adiante.
Enquanto Marlow busca Kurtz, aquilo que Bernardo Carvalho chama de “aventura intelectual”, está, na verdade, em uma espécie de caça a si mesmo. Esse estratagema, maquiada mesmo pelo tom de aventura, fica às claras quando pensamos na linguagem que Conrad emprega para narrar sua história. Ao escolher a primeira pessoa do singular, o autor exuma o coração e mente do seu personagem para revelar, no final, uma metanarrativa. Antecipando o universo borgeano, labiríntico e infindável como uma fita de Moebius, Marlow se depara com um terror que parece ora estranhamente familiar e ora desconcertante.
Ao mesmo tempo, podemos observar que Coração das trevas é um grande diálogo sobre o exílio ou a condição de exilado: a ideia permanente de não pertencer a lugar algum – como explicou Joseph Brodsky –, uma conjuntura íntima que antecede o não-lugar contemporâneo, porém, igualando-se ao pensarmos que ambos tratam do sujeito na selva – seja ela uma floresta do Congo Belga ou uma alegoria para o emaranhado de prédios de uma grande cidade. Essa condição não é tão díspar quanto parece: Conrad deixou nasceu em um território atualmente ucraniano, filho de família polonesa – cresceu em Cracóvia – e tornado cidadão inglês após ingressas na Marinha Mercante Britânica.
Metamorfose
Kurtz, como o Gregor Samsa, se metamorfoseia em um grande monstro, entretanto, diferentemente do mito kafkiano, a transformação do personagem conradiano se deveu, em parte pela loucura – sintoma da ganância e o desejo pelo marfim congolês – e pela sua personalidade confusa e contraditória. Se à primeira vista essa definição soa estranha, basta lembrar de outro homem que sucumbe à alienação: o capitão Ahab, de Moby Dick, em que Melville (1819 – 1891) investiga os limites da vingança.
Daquilo que poderia ser uma mera síntese, Conrad faz do livro uma expansão do entendimento humano, que coloca seu protagonista, Marlow, numa espécie de perpétuo xeque-mate frente ao absurdo.
Tanto Ahab quando Kurtz são homens assombrados e cujas histórias só podemos conhecer graças a Ismael e Marlow. Em todo caso, são sujeitos silenciosos e suas vozes são ecos sinistros dos tormentos que escondem, que (sobre)vivem da pilhagem legal e ilegítima, respectivamente, interpretando o mundo a sua volta como um universo alijado de sentido e que, portanto, é conivente com a barbárie. Não é à toa que a frase mais célebre de Coração das trevas seja justamente o murmúrio de Kurtz, “O horror!, o horror!”, diante da morte iminente e, que anos mais tarde, T. S. Eliot (1888 – 1965) usaria como epígrafe de “A Terra devastada”, seu poema mais famoso. (Coração das trevas servia mais uma vez como epígrafe para Eliot, para “The Hollow men”.)
Luz e sombra
As questões mais delicadas envolvendo Coração das trevas se deem exatamente no campo antropológico. Conrad exprime uma visão dicotômica dos seus personagens ou como afirmou Chinua Achebe (1930 – 2013) “meros objetos de cena” e figuras “desprovidas de subjetividade”[1], situação que, relembrando agora, está presente também em obras contemporâneas como O Africano, de Le Clézio. Sob esse prisma, a leitura de Coração das trevas – que está longe de ser um livro limitado e limitante ou racista e parcial – deve sempre trazer à luz a discussão que, por certo tempo, permaneceu na sombra da História: o genocídio cometido contra o povo congolês durante o processo de colonização.
Se por um lado Conrad tem um olhar pouco profundo a respeito de determinados aspectos – mas jamais uma descrição deliberadamente traiçoeira –, por outro faz de Coração das terras uma exegese sobre a liberdade do Congo. Pelos olhos de Marlow o autor constitui um processo de ressignificação da sociedade e daquilo que é civilização – elementos que formam boa parte da literatura de Conrad –, tentando contrapor matizes para decifrar o mundo em suas terras do sem-fim.
[1] CARVALHO, Bernardo. O Congo é aqui. In CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
CORAÇÃO DAS TREVAS | Joseph Conrad
Editora: Ubu Editora;
Tradução: Paulo Schiller;
Tamanho: 224 págs.;
Lançamento: Julho, 2019 (atual edição).