Pouco se sabe, mas muito se especula a respeito da identidade de Elena Ferrante. A misteriosa escritora italiana assina com este pseudônimo a tetralogia napolitana, que vem sendo festejada pelo mundo todo e tem encontrado muitos admiradores no Brasil. Os dois primeiros livros, A Amiga Genial e A História do Novo Sobrenome, já foram lançados por aqui.
Dias de Abandono, publicado pela Biblioteca Azul com tradução de Francesca Cricelli, não faz parte da famosa série de livros. O romance conta a história de Olga, uma mulher que de uma hora para outra se vê sozinha e com dois filhos, pois Mario, o seu marido, resolveu ir embora de casa.
Perplexa diante de uma atitude que lhe parecia tão improvável após 15 anos de casamento, “eu não conseguia me conter, sentia imediatamente um tumulto no sangue que logo me ensurdecia, queimava-me o olho”, Olga desce rumo a um inferno pessoal que flertará com o desespero e a insanidade.
Olga é uma mulher comum, com suas virtudes e defeitos. Ela está vivendo uma situação limite e a autora não demonstra nenhum interesse em transformá-la em algum tipo de exemplo a ser seguido.
A personagem precisará passar pelas fases de negação, raiva e aceitação, e em meio a isso esmiuçará cada detalhe da vida a dois, tentando identificar o momento exato do declínio. O livro narrado em primeira pessoa nos apresenta uma perspectiva não muito colorida da maternidade, um tema recorrente entre as escritoras contemporâneas como Ana Cássia Rebelo (leia crítica aqui) e Valéria Luiselli (leia crítica aqui): “estávamos todos confusos, eu em primeiro lugar. Esperava, enquanto cuidado dos filhos de Mario, um tempo que não chegava nunca, o tempo em que eu teria recomeçado a ser como havia sido antes da gravidez, jovem, magra, enérgica, descaradamente convencida de poder fazer de mim sei lá que espécie de pessoa memorável. Não, pensei apertando o pano de chão e levantando-me com dificuldade: o futuro, de certo ponto em diante, é somente a necessidade de viver o passado. Refazer imediatamente os tempos verbais”.
Olga é uma mulher comum, com suas virtudes e defeitos. Ela está vivendo uma situação limite e a autora não demonstra nenhum interesse em transformá-la em algum tipo de exemplo a ser seguido. O papo de “personagem forte” que supera tudo nem cabe aqui, pois o tom é mais naturalista, no sentido de tentar captar todos os ângulos/reações de uma mulher que sofre um revés. A protagonista pode ser tão frágil quanto explosiva, dependendo da situação que precisa enfrentar.
A sanidade de Olga aos poucos vira pó, conforme as atividades básicas do cotidiano como abrir uma porta ou a própria linguagem que utiliza, começam a ganhar contornos kafkianos. A realidade se esfarela conforme ela vai descobrindo coisas sobre o marido e começa a não saber como lidar com as reações dos filhos e com a presença do cachorro de estimação (um dos personagens mais marcantes do livro).
Ferrante sabe como criar personagens complexos que possuem uma densidade um tanto perturbadora, com reações imprevisíveis. O curioso é que boa parte da ação corre apenas dentro do apartamento da família. Tal como no filme Deus da Carnificina, de Polanski, é num microcosmo reduzido que os demônios interiores demostram a sua grandeza.
A escritora italiana tem uma prosa muito marcante, então volta e meia nos deparamos petardos como esse: “Eu era jovem, tinha minhas pretensões. Eu não gostava da página muito fechada, como uma persiana abaixada. Eu gostava da luz, gostava do ar entre as ripas. Eu queria escrever histórias cheias de correntes de ar, raios filtrados pelos quais dançam o pó. E depois eu amava a escrita de quem te faz olhar para baixo de cada linha deixando sentir a vertigem da profundidade, a escuridão do inferno”. Isso é de uma beleza estética um tanto embasbacadora e o melhor é que a autora utiliza esse recurso para dar dinâmica à narrativa e aprofundar a personagem, nunca para exibir suas invejáveis habilidades linguísticas.
Li apenas o primeiro livro da série napolitana, que é muito bom, mas (perdoem-me os fãs) parece-me que com Dias de Abandono Elena Ferrante supera, de longe, a sua obra mais famosa. É um livro imperdível.