Algumas vezes, a construção de um narrador em primeira pessoa é tão latente que sua voz acaba por sobressair a trama. O caso do Bentinho serve de exemplo. Aos que já leram Dom Casmurro, é claro que ficamos marcado pela trama absurda e somos imersos naqueles “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” em que tanto pensaram José Dias e Bento Santiago, mas é a percepção da ótica de um narrador doentio que marca seus debates até os dias de hoje.
Enclausurado, de Ian McEwan, não foge ao exemplo. McEwan nos conta uma tragédia shakespeariana que segue à risca o enredo de Hamlet: Trudy e Claude tramam o assassinato do marido e irmão John Caicronss e cabe ao filho do casal vingar seu pai.
No entanto, esse filho é apenas um feto “de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda”. É desse local que o narrador, sem conseguir ver ou tocar o espaço externo que o circunda, conhece e nos conta sobre o mundo:
“Em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto”.
Para um feto, esse narrador tem um conhecimento bastante complexo sobre o mundo. Como justificativa, ele explica que acaba recebendo as informações dos podcasts que sua mãe ouve antes de dormir e, com elas, faz seus monólogos e reflexões interiores.
Nem só sua família é alvo das elucubrações, mas tece comentários complexos acerca da sociedade e da política que o cerca ou estabelecer pensamentos filosóficos sobre sua existência. Às vezes, o feto coloca uma pitada de humorística e jocosa em seus pensamentos e revela um narrador um tanto sarcástico.
Nesse cenário, Ian McEwan nos apresenta uma versão moderna da história de Hamlet. Enquanto Shakespeare nos apresenta Hamlet, Gertrude e Claudius, McEwan nos apresenta John, Trudy e Claude.
Nesse cenário, Ian McEwan nos apresenta uma versão moderna da história de Hamlet. A semelhança que surge no enredo se aprofunda ao longo da leitura. Enquanto Shakespeare nos apresenta Hamlet, Gertrude e Claudius, McEwan nos apresenta John, Trudy e Claude.
Em uma possível interpretação do sobrenome da família, Caicronss, podemos pensar que a Morte e a Penitência marcam o grupo desde o começo. Ao desconstruirmos o nome para Cairn (uma pilha de pedras que serve como homenagem ao túmulo que se encontra abaixo dela) e Cross (uma cruz), sentimos o destino que ronda a família ao longo das páginas e que a leva ao derradeiro mal.
Além disso, podemos imaginar que os fantasmas tão queridos de Shakespeare assumem aqui uma outra face. Ao invés da presença etérea, o que resta ao feto é a lembrança imprecisa e espectral que tinha do pai somado à sua vida/não-vida dentro do útero de sua mãe, pronto para se abrir a qualquer momento. É uma pena, no entanto, que para caracterizar sua condição inconsistente e a fluidez das acusações contra o casal no capítulo 15, Ian McEwan coloque no feto um discurso preconceituoso, que fala sobre a identidade nos dias de hoje e comenta que “a biologia foi esquecida” e que, se o feto nascer como alguém branco, “pode se identificar como negro”, se quiser.
ENCLAUSURADO | Ian McEwan
Tradução: Jorio Dauster;
Tamanho: 200 págs.;
Lançamento: Setembro, 2016.