Enquanto Agonizo, clássico de William Faulkner, conta a história de uma família que atravessa uma parte dos EUA carregando o corpo da matriarca num caixão em cima de uma carroça, já que o grande sonho dela era ser sepultada em sua terra natal. Sob um sol inclemente, o corpo se decompõe enquanto os filhos seguem caminho atravessando fazendas, estradas, rios etc.
A imagem do corpo que apodrece sob o olhar vigilante de uma família me veio à mente enquanto lia Enterre Seus Mortos, o novo livro de Ana Paula Maia lançado recentemente pela Companhia das Letras. Na obra-prima de Faulkner, o sentimento de desolação impera ao longo de toda a narrativa e, no romance da brasileira, ele só faz aumentar, pois aqui há um fator que o potencializa: ninguém se importa com aqueles mortos. Não há entes queridos para velá-los, há apenas o abandono da estrada e os abutres esfomeados.
Cada livro de Ana Paula Maia é um fragmento de um mesmo universo que vem sendo ampliado com o passar dos anos, por isso é bastante comum nos depararmos com personagens das obras anteriores (importante: não é necessário ter lido os outros livros para entender, pois cada história funciona isoladamente). Em Enterre Seus Mortos, é Edgar Wilson quem dá as caras novamente e agora, ao lado de Tomás, um padre excomungado, ele trabalha numa firma responsável por recolher animais mortos em rodovias. É necessário dirigir por longas estradas desertas, raspar a carniça do asfalto, jogá-la na caçamba de uma caminhonete e levá-la para um galpão onde os corpos são triturados.
Trata-se de um faroeste lúgubre que, através da desolação geográfica, questiona não apenas a tensão violenta que preenche os limites entre a vida e a morte, mas também todo o vazio no entorno.
Os problemas começam quando eles constatam que os corpos abandonados nas estradas não são apenas de animais.
Trata-se de um faroeste lúgubre que, através da desolação geográfica, questiona não apenas a tensão violenta que preenche os limites entre a vida e a morte, mas também todo o vazio no entorno: “a estrada atrás de si é tão similar quanto a que está à sua frente. De certa forma, tudo parece o mesmo, não importa a direção para a qual se mira”, “Pergunta-se onde queriam chegar, já que do outro lado não há nada”. O futuro é uma ponte cuja obra o governo abandonou pela metade. É como se o tempo tivesse parado num paraíso de brutalidade, onde nem mesmo o céu representasse algum tipo de alijamento: “não há nada no céu: nem fúria, nem anjos, nem santos. É um céu vazio, completamente sem cor e som. Inerte”.
Wilson é uma criatura brutalizada pelas suas experiências de vida, porém isso não faz com que ele seja uma pessoa desprovida de compaixão. “Diante dos mortos, seja humano, seja animal, ele não se mantém insensível. Não existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às aves carniceiras, à vista alheia”. Ele está acostumado a lidar com o fim de tudo o que é vivo, mas a ideia de deixar um corpo insepulto para trás nem passa pela sua cabeça, já que ele enxerga uma profunda necessidade de garantir dignidade no ponto final, pois isso faz com que ele se sinta menos miserável e então afaste o medo de que sua própria carcaça um dia seja esquecida numa estrada vazia, sob a vigilância dos urubus.
Não cabe aqui revelar muito do enredo (inclusive, se eu fosse você não leria a orelha do livro), pra não comprometer o impacto dos trechos mais violentos e do processo de desumanização pelo qual alguns personagens passam, mas é importante dizer que Ana Paula Maia acertou a mão mais uma vez nestes quesitos (tal como em Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, por exemplo), e entrega uma obra absolutamente brutal e perturbadora.
Outro tema caro ao livro é a religião e ela surge aqui como um elemento mais sombrio, tanto relacionado à questão da culpa, quanto à manipulação e à exploração de pessoas miseráveis: “Encurvados aos pés de um Cristo irado cheio de juízo e de fúria, eles apontam suas Bíblias como quem aponta uma pistola. Falam de almas perdidas, mas desejam o sangue e as vísceras. Revestem-se de uma autoridade divina que insistem ter recebido de Deus e falam em línguas estranhas, uma espécie de idioma sobrenatural que somente os escolhidos podem compreender. Tudo o que não está debaixo desse manto divino é maldito e condenado nos séculos vindouros a um inferno setorizado”.
É curioso que este inferno setorizado parece ser o próprio lugar terrível em que aquelas pessoas vivem, de modo que todos são iguais em meio à podridão, por isso as observações de Wilson diante do batismo no rio são tão impactantes: “Edgar observa com curiosidade a liturgia do batismo. Pensa em como alguém pode se tornar melhor ao afundar nesse rio imundo, vasto e poluído, alimentado por dejetos orgânicos e pelo esgoto, que encobre nas profundezas o horror dos mortos insepultos”.
Foda, né?
Ana Paula Maia é, felizmente, uma voz dissonante na literatura brasileira. Em meio à tanta espuma de campanhas de marketing, viúvas de beatniks, mesmices de classe média em crise existencial e bom-mocismo militante, é sempre um alento ler uma autora autêntica, que toca o foda-se pro discurso da moda e escreve com sangue no olho a história que ela quer. A autora não tenta reinventar a roda, mas ao mesmo tempo aprimora uma voz própria muito consistente e implode o marasmo que toma conta das produções contemporâneas.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]ENTERRE SEUS MORTOS | Ana Paula Maia
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 136 págs.;
Lançamento: Março, 2018.
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