A escritora mineira Bruna Kalil Othero toma para si uma missão ousada: o de defender a criação de uma literatura brasileira interessada não apenas na relevância dos temas, mas também na renovação formal. Com 28 anos, Bruna já tem uma produção bastante profícua, que começou na poesia apenas por um detalhe: ela sempre criou em diferentes gêneros e esteve interessada em investigar os possíveis encontros entre os formatos literários.
Bruna é autora de O Presidente Pornô, obra provocativa lançada pela Companhia das Letras e que propõe, com muito escracho, criar uma narrativa da República brasileira centralizando-se em um personagem de baixa estirpe, o “segundo-sarnento” Bráulio Garrazazuis Bestianelli. Por uma série de lances do destino, ele é alçado ao cargo de presidente do “Plazil” – para a infelicidade, é claro, de todos os “plazileiros”.
Em entrevista exclusiva à Escotilha, Bruna Kalil Othero fala sobre a repercussão do livro e sobre o que significa ser mulher e escrever sobre temas ligados à sexualidade.
Escotilha » Bruna, a maior parte da sua produção literária até o momento foi na poesia. O que a fez querer explorar o romance? Haveria, por exemplo, como abordar a selvageria da era Bolsonaro de forma poética?
Bruna Kalil Othero » Foi um caminho muito natural para mim, pois desde que eu comecei a escrever, produzi dentro de todos os gêneros. Comecei publicando poesia, mas sempre escrevi crônicas, contos, teatro, alguns romances que tenho na gaveta há alguns anos. Sempre gostei de escrever tudo. Acho que o romance foi muito natural, pois o vejo como um gênero no qual cabem todos os outros.
O Presidente Pornô é um romance, mas é estruturado como peça de teatro. No meio dele, tem cenas, flashes narrativos, alguns capítulos podem ser lidos como micro contos. Penso que o romance é rico porque abarca tudo isso, e foi por isso que escolhi por ele. Cabe tudo no romance, inclusive a selvageria do Bolsonaro e da República brasileira.
O seu livro parece condensar toda uma história da República brasileira, passando por vários momentos da nossa política. Será que houve algum momento em que fomos menos risíveis? E qual o papel da literatura em desnudar aquilo que somos?
Essa era uma questão que me voltava a todo momento enquanto escrevia O Presidente Pornô, se teve algum momento da história do Brasil que foi menos pior. A resposta que eu encontrei foi: antes de 1500. Ali nós éramos uma civilização: depois, começou a barbárie.
Acho que, desde que os portugueses chegaram, invadiram a nossa terra e impuseram um modo de pensar europeu, fomos vivendo golpe após de golpe. Não teve um momento em que estava tudo certo. A invasão fez tudo começar a dar errado. Não acho que teve um momento da nossa história política depois de 1500 que foi menos pior.
A literatura é esse espelho meio torto, meio quebrado, que a gente coloca na frente da nossa cara e às vezes não quer ver, porque é uma imagem meio confusa, pois o que ele mostra é um tanto desconfortável. Mas acho que a gente tem que encarar esse espelho.
Livros como o meu têm esse objetivo, de fazer os leitores olharem para si mesmos e para a nossa própria história de um jeito meio desconfortável. A nossa história não é confortável, é uma história de violência e de golpes. O Presidente Pornô tenta olhar para isso tudo com humor e escárnio, mas a violência está lá o tempo todo.
Li em uma entrevista sua que você quer ocupar um lugar que ainda está vazio na literatura contemporânea. Poderia explicar que espaço é esse?
Não diria que ele está totalmente vazio, mas há pouca gente lá. Sou também uma pesquisadora da literatura contemporânea, e eu vejo que tem algumas linhas de força muito nítidas da produção de prosa no Brasil. Tem toda aquela corrente mais focada em histórias de pessoas marginalizadas, da violência urbana, violência de gênero, etc.
São todas linhas excelentes e importantes, mas, na minha visão, elas tendem a ser formalmente muito tradicionais. Elas inovam no assunto, colocam em cena personagens e questões que foram pouco tratadas na literatura brasileira, só com uma forma literária tradicional: ordem de capítulos, um narrador ou narradora falando, e tudo que a gente conhece é por sua voz, às vezes um segundo narrador.
Quando falo de um espaço vazio, penso no sentido da forma. Penso que hoje temos poucos prosadores que experimentam, que brinquem com a forma, assim como Pagu fez em Parque Industrial, ou como a Hilda Hilst fazia. Ainda há pouca brincadeira com os gêneros. Claro que tem gente fazendo isso, mas acho que precisamos de mais. Minha fala foi como uma provocação e convite.
Um aspecto que me chamou muito a atenção no seu livro é que ele traz um humor sexual e escrachado, mas que é produzido por uma mulher. Por que há ainda tão poucas mulheres fazendo esse tipo de literatura? Uma mulher fazendo piadas de cunho sexual ainda choca em 2023? E quem seriam suas antecessoras e contemporâneas dentro deste estilo?
Penso que, historicamente, esse não foi um lugar muito acessado por nós. Temos grandes escritoras eróticas – como Jane Austen que, para mim, é uma grande romancista erótica, embora nunca tenha escrito uma cena de sexo. O erotismo sempre esteve presente, mas o sexo não.
No Brasil, tive várias precursoras que me propiciaram escrever um livro tão escrachado quanto o meu, como Gilka Machado, considerada a primeira mulher a escrever poesia erótica no Brasil; a própria Hilda Hilst, pois não há como falar de erotismo no Brasil sem citá-la. Hilda é uma grande referência não apenas em relação ao tema, mas sobre a renovação formal.
Pagu também escreveu bastante literatura erótica, assim como Cassandra Rios, Adelaide Carraro. Temos grandes mulheres que, na época da ditadura, burlaram a repressão escrevendo textos eróticos.
As pessoas estão chocadas com o meu livro não apenas por ele ser um livro escrachado, mas porque sou uma mulher e jovem. Foi a mesma coisa que aconteceu com a Pagu, que foi questionada no sentido de “quem essa jovenzinha pensa que é”. Sinto muito esse tipo de recepção, como se não fosse autorizada para falar dessas coisas.
Quando Hilda lança seus livros eróticos, ela já era uma autora estabelecida, então o discurso era outro, mas sempre depreciativo para a mulher. No caso dela, era “a santa levantou a saia”, “a velha enlouqueceu”. No meu caso, é “quem essa novinha pensa que é”. Sempre a mulher está errada, só muda o discurso. Mas eu não ligo – o livro está seguindo o seu caminho e, se as pessoas ficam chocadas, ótimo.
Por fim: se Bolsonaro ler o seu livro, o que você acha que ele vai achar?
Primeiro que, se ele leu meu livro, eu vou ficar muito surpresa, pois não sabia que ele tinha a capacidade de ler. Se isso acontecer, de fato, vai ser um choque para a nação descobrir que ele é alfabetizado e consegue ler um livro sem figuras. Se esse milagre acontecesse – ele abrir um livro do lado certo e conseguir fazer sinapses, entender o que está escrito – acho que ele não passaria da primeira página. Ele não é o público alvo: ele é o alvo.
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