Uma sociedade plural se faz quando propomos o debate. Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, Escotilha procura refletir sobre a produção e representação da mulher na literatura.
Para este especial, conversamos com Estela Santos, coeditora do portal de literatura Homo Literatus, um dos inúmeros espaço para refletir a produção literária no Brasil. Entre outras coisas, o Homo Literatus oferece podcasts, ensaios, entrevistas e, claro, debates sobre obras de autoras.
Escotilha: Enquanto coeditora do Homo Literatus, o que você observa na produção sobre literatura escrita por mulheres?
Estela Santos: O que tenho observado, não somente na minha condição de coeditora do Homo Literatus, mas também como leitora assídua e pesquisadora, é que cada vez as mulheres têm publicado mais, muitas não temem mais a opinião masculina sobre aquilo que escrevem.
Durante muitos e muitos anos, muitas vozes femininas foram abafadas, silenciadas, sobretudo no Brasil. Boa parte das obras literárias reconhecidas como boas eram masculinas, os prêmios literários eram levados pelos homens. Por quê? Não se trata do fato de que as mulheres não escreviam coisas que pudessem ser interessantes, ou pelo fato de que a literatura de autoria feminina é ruim ou nem mesmo existia. O “sistema literário”, se assim podemos dizer, sempre teve homens à frente. Demorou-se muito tempo para que os homens percebessem que, sim, mulheres tinham algo a dizer, que são capazes de produzir boa literatura, pois não são inferiores intelectualmente.
Demorou-se muito tempo para que os homens percebessem que, sim, mulheres tinham algo a dizer.
Enfim, nesta resposta não pretendo expor um panorama histórico sobre a aceitação da literatura de autoria feminina ao longo de décadas, o que é importante destacar é que a literatura produzida por mulheres muitas vezes representam outras mulheres, seus dilemas, seus embates sociais, suas dores e suas angústias. É que as pessoas saibam disso, é importante termos o olhar feminino sobre a sociedade, afinal, um dos grandes papeis da literatura é ser social, na medida em que representa a sociedade em que vivemos, por meio da ficção.
Alguns livros sobre os quais você já escreveu abordam questões sociais e raciais, entre eles Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus) e Americanah (Chimamanda Ngozi Adiche). Como a literatura retrata a mulher?
Bom, a literatura produzida por mulheres as representa de forma menos estereotipada e simplista. Não que homens não sejam capazes de representar a mulher muito próximo daquilo que ela é, nada mais incrível do que ler Vidas Secas e ver como Graciliano Ramos foi capaz de representar Sinha Vitória, pobre, retirante e mãe, não só dos filhos, mas também do marido. Ela que o guiava, ela que tomava a frente nas situações mais difíceis enfrentadas na família, inclusive na hora do pouco alimento.
Escritoras como Clarice Lispector, Adélia Prado, Elvira Vigna, Luci Collin, Ana Paula Maia, Heloísa Seixas, Adriana Lisboa, Patrícia Melo, Lygia Fagundes Telles, entre tantas outras que agora me fugiram da cabeça, lançam um olhar atento à condição feminina na sociedade, não de forma simplista e nem tentando ser panfletárias na causa feminista. Na verdade, nem todas são ou foram um dia feministas.
Na sua visão, quanto a nossa literatura contemporânea é reflexo da nossa sociedade?
Quem me conhece sabe que, mesmo sendo graduada em Letras e estudando literatura há um bom tempo, não me prendo somente à leitura dos clássicos. Não que eles não sejam importantes na formação de um leitor, são e muito, mas confesso que leio muito mais literatura contemporânea – termo complicado de especificar a abrangência em relação a datas.
A literatura contemporânea, na minha opinião, sempre vai refletir a sociedade. Ela é escrita e criada em um momento específico, histórico, social, político, cultural, etc, por um escritor ou escritora que também se faz presente nesse momento. Esta pessoa que escreve é repleta de embates sociais vivenciados, de opiniões ou até de preconceitos, portanto, toda obra literária perpassa um período e acaba refletindo a sociedade, seja de agora ou de uns anos passados, pois ela é escrita/criada/arquitetada por um sujeito inserido socialmente no mundo.
E como já dizia Candido, uma obra literária sempre será social na medida em que retrata, reflete e representa questões sociais. Sei que tem gente que vai dizer “Mas têm obras que não refletem nada de social explicitamente, como exemplo temos Lavoura Arcaica, do Raduan!”, e eu digo: “Lavoura? Trata-se de um clássico da literatura brasileira, dito contemporâneo, que explicita de forma genial a questão do patriarcalismo, isto na voz do pai e de seus sermões. Patriarcalismo este que, infelizmente, ainda vigora em muitos lugares de nosso país.”