Por Otavio Linhares*, especial para Escotilha
ela é tão linda que dá até vergonha de ficar olhando. só que o zé não teve vergonha. chegou dançou e quando todos viram já estavam se beijando. sempre acho que foi uma oportunidade perdida. podia ter sido eu. podia ter sido eu! claro que podia. porque eu não fui lá e. sei lá. é difícil explicar. cada tentativa minha de mover um músculo é seguida de um negócio que dá nas pernas que trava tudo. os olhos embaçam. o sangue sobe e encharca as bochechas. fico roxo. às vezes a piazada fala que sou muito envergonhado. deve ser isso. queria conseguir dançar com ela. sair do meu canto e chegar ali nas cadeiras e quer dançar? vixi. só de pensar nisso já dá tontura. ela vai dizer não. estou ligado que vai. porque diria sim? sou sempre o mais novo da festa. o mais baixinho. o mais fracote. li uma matéria no jornal que diz que as mulheres gostam de homens mais velhos que elas por causa da maturidade. uma menina de doze anos equivale a um cara de dezesseis. era isso que a matéria dizia. vai demorar um monte preu dançar com a helô. acho que a gente já vai ter saído do colégio e nunca mais vai se ver e aí tudo não vai passar de uma dor de estômago. será que vai ser sempre assim? será que um dia eu vou conseguir PLAW! um tapão na minha cabeça sai da frente piá! diz o grandão. no meu caso são todos grandões. vai se foder idiota! penso. se eu dissesse ele ia me estufar e eu ainda ia apanhar em casa por chegar de olho roxo. então contorço a cara mordo a mandíbula travo os dentes e fico quieto. os piás passam por mim em direção à varanda pra fumar escondido. nem tão escondido. de alguma forma eles querem que as pessoas os vejam. mas só as pessoas certas. não adianta acender um cigarro e a tua mãe te pegar fumando escondido ou com os dedos amarelados com aquele cheiro característico de cigarro que impregna até a alma de quem fuma. se a mãe me ver fumando é pau na certa. a pessoa que tem de ver você fumando tem que ter o desejo de fumar também. tem de achar isso uma coisa fantástica. uma tarefa árdua. um desafio pessoal. tipo nossa! olha lá! o fulano tá fumando. ai! o fulano é demais! queria tá com ele. ser ele. trepar com ele! credo! trepar? tsca! sei lá! de alguma forma me relacionar com ele. eu que fico de longe sempre escuto as meninas falando isso. é o que os piás querem. eu não tenho coragem. mentira. um dia peguei uma bituca que estava no cinzeiro lá de casa e imitei o jeito que os amigos dos meus pais fazem. foi uma merda. parecia que eu tinha engolido um negócio tipo um sei lá. nunca tinha provado um bagulho tão ruim na minha vida. a mulher da propaganda da tv diz que quem fuma passa pra maconha cocaína perde os amigos crack vende tudo perde a família foge de casa mora na rua roubo cadeia prostituição roubo tráfico roubo vagabundo roubo marginal e aí sai sangue e a pessoa morre. não sei se ela está falando comigo nem sei se é verdade. os olhos dela brilhando enquanto fala são tão verdadeiros que fica difícil de duvidar. provavelmente a moça teve uma experiência ruim na família ou perdeu uma pessoa querida pras drogas ou ela mesma foi usuária e se fodeu e aí foi lá na tv falar sobre a sua experiência pra passar uma frase de carinho e de apoio aos que precisam de ajuda sim! foi isso sim! a tv não mente! mudo de canal e o cara montado no cavalo indo em direção ao pôr do sol olha pra mim e diz só alguns homens sabem que a beleza dos cavalos selvagens está na sua liberdade. venha! ele continua. levanto do sofá e vou em direção à tv. estou indo. os piás apagam o cigarro na grade que separa a varanda do gramado do jardim do condomínio e voltam pra festa. vem com eles um cheirão forte ocre e amargo que faz com que todos fiquem olhando e sussurrando frases de apoio e de crítica e de amor e de espanto. eles cami nham com o peito estufado como se fossem os heróis da juventude. e são! toda a piazada sorri com o canto dos lábios e as meninas acham eles o máximo. um deles vai até a vitrola e tira o disco que está tocando sem perguntar pra ninguém se pode fazer isso. só pega o disco que risca fazendo um barulhão e larga o vinil ali mesmo do lado da vitrola. de dentro da jaqueta de couro puxa um disco da sua banda favorita e bota pra tocar. dead kennedys. toda a piazada voa pra pista de dança e começa a se chutar e a se esbofetear e a gritar a letra em inglês de um jeito tão alto que fica impossível saber se alguém ali sabe ou não o que está cantando. nossa professora de inglês que é uma lóque e nem sabe inglês direito ia ficar escandalizada com essa cantoria alhures. só que ela nem sabe falar inglês direito! como ela pode não saber de uma coisa e fazer críticas aos outros? esses tempos ela ficou discutindo comuma aluna que o nome michael se pronunciava mixael. o que? ela falou isso mesmo? a professora falando errado um troço tão básico? sim! o x soando ch como na palavra xixi ao invés de maicou como nos filmes legendados que a gente vê. a menina levantou o dedo. professora? pois não. não seria maicou ao invés de mixael? claro que não! de onde você tirou isso? sei lá professora. pelo menos nos filmes que a gente vê no cinema sempre que aparece um michael a gente vê as personagens falando maicou e não mixael. quem é a professora aqui? a senhora. então é mixael e pronto! quando você crescer e for dona do seu nariz você fala como você achar melhor! por enquanto quem manda aqui sou eu e vocês só obedecem! falou gritou e saiu da sala. ficou todo mundo sem entender nada. meio afetada a professora. o que a gente podia fazer? na semana seguinte ela não apareceu. e na outra também não. era a segunda aula da segunda feira. a primeira era religião mas nunca teve religião então na segunda feira a gente só começava na terceira aula quase na hora do recreio. e tudo isso por causa do tal do maicou? aham. credo! o diretor disse que ela pediu licença e só volta no ano que vem. que massa! pelo menos agora sobra tempo pra ir lá nas lojas americanas e pegar uns chocolates e depois na mesbla pras encomen das das gurias. cara! tô fazendo muita grana com canetas doze cores. cada uma dá pra vender por deizão. se você for ver lá na loja tá vintão cada uma. e ainda tem os chocolates pra bater um rango antes de entrar no colégio. e nunca pegaram vocês? putz! uma vez quase. mas aí a gente saiu correndo e não deu nada. é que não é só a gente tá ligado?! cê chega lá nas americanas e tem uma galera pegando chocolate. cê tem que ser mais esperto que o resto da galera e que os seguranças. esses dias a gente tava saindo pela saída de trás e tinha dois piás esvaziando os bolsos pro segurança. a gente ficou lá do outro lado da rua vendo e não parava de sair chocolate dos piás. hahaha! os dois pareciam uma fábrica de chocolates. saía doce dos bolsos da mochila das meias da cintura da cueca. sério!? aham! cê não bota fé! o segurança até tirou a camiseta pra fora e fez tipo uma bolsa assim pra ir colocando os chocolates dentro. parecia um canguru! foi muito engraçado. os piás tavam se cagando nas calças que os seguranças dedurassem eles pras mães. imagina se a nossa mãe tem de vir aqui buscar a gente?! nossa! é tiro porrada e bomba! acho que eu ia ficar uma semana apanhando. ia mesmo! e com aquele tamanco de madeira. imagina! hahaha! a gente ia ficar mais quebrado que arroz de terceira! hahaha! então agora tá sujo ir lá? tá. tá bem sujo. a piazada tava até combinando de dar um tempo com as paradas ali no centro. acaba a música e o piá vai lá e muda o disco de lado. começa tudo de novo. porrada soco chute. não vai entrar na roda? nem fodendo. se eu entrar aí eles me quebram. pela janela vejo o zé passar com a helô. vazaram da festa. essa piazada chega e muda as músicas e aí para de tocar as lentas românticas e todo mundo vaza. é a hora que a esperança morre. peguei mais uma lata de coca e fui lá pra fora. a piazada já estava se organizando pra ir embora quando o síndico do prédio desceu puto da vida TODO MUNDO PRA FORA! fodeu galera! na terceira vez que ele repetiu a voz de comando chegou duas viaturas da pm. agora sim fodeu. a piazada que tinha cigarro maconha e drinks saiu correndo e os canas foram atrás deles. eu que estava ali de boa com mais uns amigos ficamos quietos e fomos saindo sem acontecer nada com a gente. pegaram três. o resto fugiu. nesse momento como se o natal tivesse chegado de repente e as luzes começassem a piscar e eu ganhasse o presente dos meus sonhos sinto uma gota de alegria percorrer meu corpo inteiro. consigo sorrir de verdade. sabe o que é sorrir de verdade? olho pros meus amigos e eles estão tendo a mesma reação que eu. pela primeira vez na vida vi vantagem em não ser notado. na cabeça de cada um de nós começa a tocar uma música favorita e a gente sai correndo e dançando no meio da rua freneticamente embalados por uma euforia extasiante e de repente todos se abraçam e é maravilhoso sentir que pela primeira vez o mundo não é tão real assim. subimos até o ponto de ônibus do madrugueiro já suados de tanta correria e aí quatro malacos que vinham descendo a rua param e perguntam alguém tem horas? essa é a deixa. o código secreto dos malacos pra roubar tudo o que a piazada do nosso tamanho tem. levaram o que tinha restado da noite. a grana pra três passagens e três pares de tênis. e ainda levaram a mochila do meu amigo com todo o material escolar dentro. porra piá! quem vai numa festa e leva caderno caneta e livro?! foda. terceiro assalto em um ano. já perdi um monte de coisa. teve uma vez que foram dois assaltos no mesmo dia. uma bike em um e o boné em outro. a galera fala que eu sou zicado. acho que os malacos gostam de mim. deve ser essa tua cara de idiota. teu cu! as duas viaturas ali a cinquenta metros da gente tão preocupadas com a bagunça da festa que não viram que estávamos sendo assaltados. voltamos pra frente do prédio pra prestar queixa e nem deram bola pra gente. tentamos falar com um policial e nada. tentamos com outro e sai daqui piazada! vão pra casa! é o melhor que vocês fazem! de repente todo mundo sumiu dali. as viaturas se foram. o síndico locão lacrou o portão do prédio com corrente e cadeado pra ninguém entrar e subiu pra casa dele. a galera já tinha saído correndo. só restou nós três. podia estar chovendo né? hahaha! rimos e fomos subindo descalços até em casa discutindo se a nossa capacidade de aguentar as porradas é maior do que a de dar porradas. conclusão? quem saiu acompanhado da festa não foi a gente.
* Otavio Linhares tem 39 anos e é natural de Curitiba. Tem formação em Filosofia, História, Teatro e Dramaturgia. É editor do selo ENCRENCA e da Revista Jandique.