I
Há cinco anos escrevi sobre Primavera de cão para a Tribuna do Paraná – pouco depois de o Modiano receber o Nobel. Relendo recentemente, o livro e o meu próprio texto, percebo que essa novela ainda se revela um grande mistério. Tão importante quanto a relação do narrador com o fotógrafo Francis Jensen é a relação dos personagens com Paris. Aquela não é exatamente a mesma cidade que se pode viajar, mas é uma Paris mítica, que só pode existir nas memórias ou nas fantasias de quem ainda vive num tempo que não é mais o seu.
A ideia das cidades míticas me persegue – e eu também vivo uma Curitiba que já não mais a do hoje, e sim a de ontem e de anteontem – em parte porque, mesmo que inconscientemente, parece fazer parte do corpus literário de muitos escritores. Borges, que escreveu o poema “A Fundação mítica de Buenos Aires”, ficou encalacrado na capital portenha de sua juventude e na Argentina dos seus antepassados – seu avô foi uma figura fundamental na História dos hermanos – um pouco, é verdade, graças à cegueira que o tomou de assalto por volta dos 40 anos, entretanto, ainda que pudesse enxergar com perfeição, o autor de Ficções não estaria em posição diferente: era um saudosista inveterado.
Sua obra deixa isso muito claro. Textos como “Pierre Menard, autor de Quixote”, todos os relatos de O Informe de Brodie, “Furnes, o memorioso” dão conta dessa relação de Borges com a memória. Entretanto, nenhum outro conto consegue construir o tom memorialístico de “O Outro”, que abre O livro de areia, último livro publicado em vida e cujo primeiro conto é justamente um encontre entre dois Borges: o velho e o jovem.
A ideia das cidades míticas me persegue – e eu também vivo uma Curitiba que já não mais a do hoje, e sim a de ontem e de anteontem.
Cortázar ficou entre Modiano e Borges. Viveu uma Buenos Aires passada, a cidade que só pode ser enxergada pelos olhos de um exilado. Em Paris, esteve na mesma cidade que Hemingway e Gertrude Stein – praticamente, aquela que Woody Allen visitaria tantos anos depois em Meia-noite em Paris (Allen que, justamente, também não está na Manhattan do agora, mas em algum lugar do passado entre Bogart e um concerto do Louis Armstrong). N’O Jogo da amarelinha, Cortázar conseguiria usar a Paris real para alimentar a sua sede pelo passado. Oliveira é síntese do homem perdido no tempo, que flutua entre o futuro – a memória do que ainda está por vir – e o passado – a memória do que já foi. Da mesma maneira, os irmãos de “Casa tomada”, conto que inicia Bestiário e que nasceu de um sonho.
II
Em um universo brasileiro, João Antônio eternizou os merdunchos em sua literatura. Retratou traficantes, leões-de-chácara, trambiqueiros e tantos outros párias de maneira singular. Seus livros registram o invisível, porém, sempre um passo atrás. A sua São Paulo é idílica, de uma malandragem ética, de crimes com código de conduta. O registro que faz vai além das cenas e dos espaços urbanos: cravou a língua – o dialeto – daquela gente, ajudou a dicionarizar um linguajar que estava restrito ao gueto, como se trouxesse os ratos à superfície. Entre a crônica policial e literatura de polpa, João Antônio criou uma algo bastante interessante e quase inigualável. Passados tantos anos, ainda é um dos grandes.
A Curitiba que Dalton Trevisan viaja é aquela que não concretou o Rio Belém, que as balas Zequinha ainda são coqueluche e que permitia que suas mulheres bordassem as iniciais dos maridos e amantes nas cuecas dos respectivos mancebos. O Vampiro, talvez, seja o grande artesão da memória, um esculpidor do antes da literatura brasileira. À sua literatura não importa muito o que há, mas o que existiu. Em busca de Curitiba perdida, livro do começo da década de 1990, resume o seu perseguir por algo que já foi. O personagem daltoniano é um Quixote das Araucárias, um cavaleiro das causas perdidas.
É diferente da cidade que Carlos Machado testemunha: uma Curitiba escondida na multidão, permeada pelos tantos não-lugares que sedimentam um espaço em branco, mas sempre preenchido por histórias. Poeira fria e Esquina da minha rua, duas novelas à la Modiano, escancaram homens e mulheres encravados no passado, seja a memória da mulher em fuga ou o amigo que se esquiva na Praça Osório. São sempre homens e mulheres em trânsito, com raízes no ar, que não estão presos ao petit-pavê do calçadão da Rua XV.
É o mesmo ambiente literário da trilogia A Complicada beleza, de Fernando Koproski, mas existe uma inversão. Koproski busca aquilo que não está à mostra, coloca no dedo na ferida da universidade pública, brinca com os símbolos que dão vida à cidade. É um herege, no melhor sentido. Isso faz dele um rebelde, um inconformado com o status quo de uma Curitiba limpinha e para inglês ver.
III
Em um determinado ponto de Amor à tarde, Eric Rohmer afirma, pela boca do Frédéric, seu protagonista: “o que faz as ruas de Paris tão fascinantes é a presença fugaz e constante de mulheres que eu nunca mais verei novamente”. Frédéric também vive uma Paris mítica, uma cidade que orbita em um romantismo platônico, aquele que não traz problemas justamente porque não acontece. É o contraste com as pessoas sempre tristes do metrô de Bando à parte, de Godard. Ambos são retratos – registros – de Paris, a mesma cidade, por óticas e esquinas diferentes.
No final das contas, todas as cidades são a mesma. E são nenhuma. Essa geografia afetiva é um caminho sem volta, um passeio pelo mapa do invisível, por ruas que existem na memória do leitor e do autor. A fundação mítica será sempre um objetivo inatingível, uma utopia distante, mas que também persegue a todos. E do qual é impossível fugir.