Em sua obra máxima, A Paixão segundo G.H., Clarice Lispector (1920 – 1977) flagra o mundo a partir da dissolução da relação da protagonista com a empregada recém-demitida. É no quarto da serviçal que a narradora, ao comer uma barata, encarna um processo intenso de autoanálise e revisitação.
Expondo as feridas e as contradições de um país em sangria perpétua, Suíte Tóquio, de curitibana Giovana Madalosso e publicado pela Todavia, parte do mesmo recorte social para tentar construir um painel do Brasil contemporâneo. Nesse sentido, se a inflexão de G. H. nasce da degustação insólita, Fernanda – a patroa de Suíte Tóquio – recai sobre o mesmo processo depois que a filha Cora é raptada pela empregada, Maju.
Expondo as feridas e as contradições de um país em sangria perpétua, Suíte Tóquio, de curitibana Giovana Madalosso e publicado pela Todavia, parte do mesmo recorte social para tentar construir um painel do Brasil contemporâneo.
A autora, que já publicou o livro de contos A Teta irracional e o romance Tudo pode ser roubado, chama para o debate sobre os papeis sociais da mulher, entretanto, as questões sobre abonando, negligência e rapto são tratadas de forma superficial, quase prosaica – fazendo com que algumas cenas (como a ida dos pais de Cora à delegacia) soem artificiais.
Vozes
O romance de Giovana Madalosso se insere em uma tendência que está se consolidando na literatura brasileira contemporânea: a multiplicidade de vozes. Para estabelecer esse périplo diáfano, Madalosso dá luz ao olhar de suas duas personagens e cria uma teia ambígua de percepções. O Filho da mãe, de Bernardo Carvalho, Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, Solução de dois Estados, de Michel Laub, A Morte e o Meteoro, de Joca Reiners Terron, e Esquina da minha rua, de Carlos Machado, também experimentam desse recurso para narrativo para dissecar os múltiplos contextos.
Apesar do ensaiar um romance amplo, capaz de encarnar nas narradoras e seus léxicos os mis brasis que formam o povo brasileiro, o livro esbarra na impossibilidade de recriar o idioma do outro, do qual pende certa artificialidade e planificação. O dualismo da narrativa, portanto, sofre com a emulação, deixando uma espécie de incompletude, principalmente, no tensionamento da voz de Maju que, em alguma medida, parece vinda de fora, enxertada, ou de uma tentativa de transcrição.
Enquanto Fernanda é uma mulher rizomática, em que olhar sobre o mundo se desdobra para além dos sentidos, Maju é retratada como um sujeito cartesiano, cujos domínios não ultrapassam o limite do seu corpo físico e das suas emoções. Ainda que isso seja um reflexo sintomático das desigualdades tupiniquins, as ações de Maju são solapadas por lugares-comuns dessa relação maniqueísta e dicotômica.
Liberdade é escravidão
Ao mesmo tempo, Suíte Tóquio – cujo título é o apelido dado por Fernanda ao quarto de Maju – é um pequeno tratado sobre liberdade. Por mais intensa e interessante que seja Fernanda, a patroa está presa a um casamento em ruínas e à paixão que sente por Yara. Maju, por outro lado, não goza de maior liberdade: atada às lembranças de Lauro, ao desejo de ser mãe e ao medo que a sua classe lhe impinge compulsoriamente. Poucas vezes um dos lemas de 1984 – liberdade é escravidão – foi tão bem traduzido para a realidade brasileira.
Suíte Tóquio é um bestiário de fissuras enraizadas em um país de cultura exploratória e cínica. Ao trazer à tona um imenso catálogo de erros, inseridos em ações cotidianas com naturalidade e certa melancolia – como em qualquer enciclopédia –, o romance de Giovana Madalosso não se propõe a oferecer uma solução – algo que, na cena final, fica claro –, mas reforça estereótipos e faz prevalecer a lei do mais forte.