A noção entre ficção e realidade anda embaçada. E não é de hoje. Na década de 1960, Manuel Bandeira escreveu um dos seus melhores poemas a partir de uma nota no jornal. Antes ainda, quando Tristan Tzara deu as regras para escrever uma poesia dadaísta, a ideia de arte e de real se fundiam de maneira única:
Pegue um jornal.
Pegue uma tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.
À medida em que a tecnologia avança, os recortes – literalmente – de realidade também dão um passo adiante em direção aos fragmentos do real. História de Joia, a estreia em prosa do poeta e tradutor Guilherme Gontijo Flores, explora justamente as brechas de uma sociedade pragmática e dividida entre polos que não se atraem. Seus personagens são arquétipos do cidadão na era dos aplicativos e algoritmos: como se tudo e todos pudessem ser mensurados, catalogados e colocados em grupos. Os capítulos são cartas de tarô, mas que, diferentemente do que fez Calvino em O castelo dos destinos cruzados, encontra uma relação mais subjetiva e próxima com o leitor.
Entre colagens do Facebook, da Bíblia e de uma matéria d’O Globo, Gontijo usa a ideia do ready-made e do intuitivo para criar um retrato da violência e da segregação. É difícil pensar História de Joia dentro de um jogo linear de narração: a compilação de fatos e de coisas são o espelho das multidões que assomam as grandes cidades, do barulho das buzinas em um dia de chuva e das pessoas que se escondem na falta de coragem para mudar.
História de Joia é, em certa medida, um texto político e necessário, é um exercício de alteridade e honestidade exatamente no momento em que todos estão na lama – mas só uns poucos conseguem olhar para as estrelas.
Os perigos dessa vida
A Joia, que dá título ao livro, está em todos os lugares e, ao mesmo tempo, não está em lugar algum. Ela está nas singelezas da vida, nos desaforos e na esperança – e que dão o tom ao texto. É como se a cada capítulo os personagens e o leitor se perguntassem: “quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”. Para todas essas questões, não existem respostas prontas ou fáceis, ao contrário, tudo se complicado após o primeiro lampejo de questionamento.
A partir dessa estratégia, Gontijo se mostra um prosador articulado e urgente, capaz de entender que, como diria Vinícius, são demais os perigos dessa vida. “Pou”, diz logo no primeiro capítulo, “cada um corre prum lado, emaranham-se braços e pés, trombados uns tantos tombam por chão, enquanto tentam não virar calçada pra gente louca em fuga”.
Por isso, nesse jogo de pequenos fiascos mundanos, qualquer tentativa de explicar Joia e sua história – e, claro, a História de Joia – é um ato falho ou fadado ao fracasso. Gontijo é sábio ao armar sua narrativa entre as aspas invisíveis do cotidiano, onde nada está propriamente criado, mas tudo se desenrola como um novelo de lã por uma sala atapetada.
História de Joia é, em certa medida, um texto político e necessário, é um exercício de alteridade e honestidade exatamente no momento em que todos estão na lama – mas só uns poucos conseguem olhar para as estrelas.
HISTÓRIA DE JOIA | Guilherme Gontijo Flores
Editora: todavia;
Tamanho: 88 págs.;
Lançamento: Março, 2019.
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