Alguns textos literários conseguem manipular e embaralhar de tal maneira os limites de gênero, forçando deslocamentos e abrindo fissuras na linguagem, que em alguns casos não resta outra atitude ao leitor senão superar o estranhamento provocado pela escritura, pela implosão das formas ou pela dispersão da unidade. Embora não seja uma exclusividade de nossa época, características como o hibridismo e a tendência a uma ação interdisciplinar podem ser percebidos com certa frequência, tanto na literatura quanto em outras linguagens e produções artísticas contemporâneas.
É o caso de A intrusa (Editora Garamond, 2016) livro de estreia de Izabela Leal, vencedor do Prêmio Rio de Literatura 2016. O texto que se assemelha à estrutura de uma peça de teatro (cenas, coro, dramatis personae) ao longo de setenta e duas páginas, também dialoga abertamente com outros discursos como a crônica, os fait divers, o diário, a prosa poética e até mesmo o discurso jurídico. Uma jornada na qual o leitor se depara com uma linguagem flutuante, movediça, subtraída por um movimento em direção ao silêncio, ao não lugar. Nesse sentido, trata-se de um livro que rebela-se contra definições simplificadoras. “Seria antes uma performance curvatura do corpo apresentação da voz”, diz a protagonista.
Não seria equivocado apontar o recorte e a colagem como métodos aos quais Izabela Leal recorre para compor algumas das 44 cenas de A intrusa. Duas personagens povoam a obra, a narradora e “ela”, a intrusa. Duas vozes inconstantes, permanentemente instáveis. Uma voz vinda de outro lugar, inominada, rompante, espraiada. Tal é a escritura de Izabela Leal, tecida entre bordas e margens, que não designa interlocutor, existe e fala através de flashs, insights, agenciamentos. Pura linha abstrata, como diz Deleuze e Guattari ao comentar In the Cage, de Henry James. Se há linearidade nas datas que acompanham as cenas de A intrusa, elas se perdem nas imagens e no conteúdo da narrativa. “Enredo desconexo narrativa extraviada intriga fugidia trama mal articulada”.
Imagens que evocam o fotógrafo cego Evgen Bavcar, a apropriação do verso de T. S. Eliot (october is the cruellest month) para referir-se ao mês em que faleceu a cineasta Chantal Akerman, menção às irmãs Bronte e a Hilda Hilst são algumas das referências implícitas ou explícitas dispersas pela obra da poeta.
Ao caracterizar a personagem “ela” como “não catalogável”, é como se a narradora falasse de sua própria linguagem, “uma voz estranha sem melodia”. Sobre A intrusa, o poeta paraense Ney Ferraz Paiva escreveu que se trata de uma obra que “amplia, clandestinamente, uma zona instável do poético”.
Em outros momentos surgem cenas violentamente realistas, políticas e atuais. Em sua dimensão, a arte pode situar e abordar assuntos que nos cercam, desvelando realidades embotadas ou conscientemente silenciadas pelo poder. “A cidade está doente. a repressão é nossa vacina”, presente na cena 23, expõe a coerção como dispositivo pelo qual o Estado procura solucionar questões de ordem política e social. Como Vieira, personagem de Glauber Rocha em Terra em Transe, que encontra na repressão policial um meio de sanar contradições sociais.
Outra cena em que a realidade invade o jogo literário, a narradora descreve os impactos do naufrágio do navio Haidar, ocorrido em outubro de 2015 no município paraense de Barcarena, onde uma embarcação afundou com cinco mil bois vivos no porto de Vila do Conde. Quase três anos após o ocorrido, a empresa Minerva Foods ainda não foi responsabilizada pelo desastre ambiental. “Toneladas de carne apodrecida. carcaças. o cheiro sufocava. ar irrespirável. uma pequena cidade. nas ruas as pessoas com máscaras. consumo de carne putrefata”. Eis uma experiência literária da qual o leitor não sai ileso ou mesmo indiferente, ao contrário, o estranho eco da voz da narradora e a presença fugidia da intrusa permanecem reverberando após a queda do pano.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]A INTRUSA | Izabela Leal
Editora: Garamond;
Tamanho: 72 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2015.[/box]