“Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes.
E o mundo se transforma.
As pessoas podem não reparar na hora, mas isso não importa.
Mesmo assim, o mundo se transformou.”
Julian Barnes em Altos voos e quedas livres
Duas pessoas em uma janela. De mãos dadas. Uma de frente para outra. Uma para dentro e outra para fora. Se uma cair, ambas estarão estateladas no chão. É preciso que as duas se agarrem com força, se segurem o máximo que puderem para evitar a queda. É sob essa metáfora que Julian Barnes vê as relações amorosas: um cabo-de-guerra perpétuo. São vozes que se silenciam enquanto falam cada vez mais alto e buscam mais espaço na burocracia da vida cotidiana atulhada de obrigações insossas. A única história (editora Rocco, 2018; tradução de Léa Viveiros de Castro), seu livro mais recente, é um olhar sincero sobre o amadurecimento e a decepção.
Paul é um jovem de 19 anos que se envolve com Susan, uma mulher 30 anos mais velha, casada e com duas filhas. O encontro casual durante um jogo de tênis em um clube de classe média londrino se transforma rapidamente em um lascivo caso amoroso. Como um pavio acesso, a relação acaba à medida em que Paul se torna um homem, se depara com os obstáculos cotidianos à felicidade e Susan se dá conta de que perdera o status, o conforto e a estabilidade de estar casada há muitas décadas.
Barnes é um escritor sofisticado, um retratista, e que não se deixa cair na tentação de uma história ao molde do batido “ensina-me a amar”. São as nuances e as diversas camadas dos personagens que dão fôlego à narrativa que, por sua vez, cabe muito bem no estilo que o escritor consolidou com O sentido do fim ou O papagaio de Flaubert. Paul não é só jovem e idealista, mas também alguém à procura de uma identidade, uma reputação. Era fácil estar entediado no pós-guerra, e Barnes não esconde que a aventura com uma mulher mais velha é, antes de tudo, um atestado de masculinidade e uma forma possível de escapar do fastio.
A construção do relacionamento de Paul e Susan é como uma casa edificada sem a fundação necessária: a beleza das estruturas erguidas distrai os arquitetos que percebem, não muito tempo depois, que tudo aquilo será só ruína. Como em Reparação, do amigo Ian McEwan, Barnes cria uma história cujo centro são as consequências de detalhes pequenos e íntimos. A única história é também uma espécie de romance de formação à força e que, devido às circunstâncias, carrega a urgência e a necessidade de viver o carpe diem de Horário e Gregório de Matos.
“Nós não conversamos sobre o nosso amor, simplesmente sabemos que ele está ali, indiscutivelmente, que ele é como é, e que tudo irá fluir, inevitável e legitimamente desse fato. Nós repetimos constantemente ‘Eu te amo’ em afirmação? A esta distância, eu não posso ter certeza. Embora eu me lembre que quando me deito ao seu lado da cama, depois de trancar a porta dos fundos, ela sussurra: ‘Nunca se esqueça, o ponto mais vulnerável é o meio da quadra’.”
Barnes evoca uma noção de profundidade e distância no romance – como se criasse pontos de fuga dentro da narrativa.
Pontos de fuga
O jogo de cinismo e sarcasmo que Gordon, o marido traído, faz com o jovem amante, é brutal. Paul é inocente demais para perceber o que realmente está acontecendo. Ainda que narre esse imbróglio romântico muitos anos mais tarde, o narrador-protagonista não camufla as suas deficiências, ao contrário, as expõe para que leitor possa entender não só cenário, mas também o tempo psicológico daquilo que conta. Paul sabe que a decrepitude física, sexual e mental do rival são pontos a seu favor. Contra ele, entretanto, está a cumplicidade, mesmo que irônica e depreciativa, dos casais que estão juntos há muito tempo.
Nesse sentido, é interessante a forma como Barnes evoca uma noção de profundidade e distância no romance – como se criasse pontos de fuga dentro da narrativa. À medida que o envolvimento com Susan, que dura pelo menos uma década, se desfaz, Paul oferece pontos de vista mais amplos – menos focados nos dois – e chega ao ápice da ausência ao falar de si na terceira pessoa.
Essa ideia do esfacelamento das relações percorre boa parte da obra de Barnes. No conto “Higiene”, de Um toque de limão, um soldado reformado tenta alijar-se da esposa se escondendo todos anos em um jantar do regimento. Em outro texto do mesmo livro, “As coisas que sabemos”, a amizade entre duas viúvas – que se encontram frequentemente para relembrar os anos dourados – é medida por aquilo que não é dito. No relato “Na casa de Phil e Joanna”, dividido em quatro parte ao longo de Pulso, o escritor debate as percepções mundanas da elite que se esquece da fome e da miséria que assomam às suas portas. Em O ruído do tempo, Barnes discute os perigos da política e da castração artística.
São numerosas as possibilidades de se olhar o mundo, Julian Barnes prefere o ângulo obtuso das relações e suas complicações e, por isso, Paul pergunta logo de cara, na primeira página:
“Você prefere amar mais e sofrer mais, ou amar menos e sofrer menos? Para mim, essa é a única e verdadeira questão.”
Barnes, que sempre foi um afeito às metáforas – e as defendeu contra a falta de memória –, não poupou seus personagens de uma realidade dura e escarrada.
Rancor
Ao longo de A única história, Paul vai se transformando no homem que ele sempre detestou: um sujeito menos amigável, mais preocupado com o trabalho e, claro, rancoroso. É esse um protótipo de Gordon. Se Susan se entrega à bebida – logo ela que só tomava uma taça de xerez no final de ano para não fazer desfeita –, o rapaz se deixa levar pelos arroubos masculinos e pela negligência. É na ruptura da ética que regia o casal que o abismo se forma e agiganta.
Julian Barnes nunca escondeu seu apreço por John Updike (1932 – 2009) e, nesse sentido, o escritor norte-americano se materializa como uma influência perceptível. “Isso é um truque”, disse ao ser perguntado sobre o peso do autor de As viúvas de Eastwick em alguns de seus livros. Diferentemente de Updike, Barnes quer escrever histórias condensadas, obras pequenas com pouco mais de 100 páginas – embora o enlace de Paul e Susan se desdobre pelo dobro desse tamanho. “Olha, e isso já me toma um ano”, afirma.
A questão vai além. A presença de Updike é muito mais temática, relacional, que qualquer outra coisa. Em Quer casar comigo?, Updike materializa nos casais de vizinhos Jerry e Ruth, Sally e Richard os conflitos e confusões da classe média dos Estados Unidos. É difícil negar o paralelo com A única história ou com os contos “Apetite” e “Linhas do casamento”. O sofrimento, muitas vezes deixado sob o brilho social, é talvez algo mais comum do que se possa imaginar. Gatsby, a criatura de Fitzgerald, é prova cabal de como o status pode se sobrepor à dignidade.
Frieza
Para alguém que, como Barnes, escreveu sobre a pressão em cima de Shostakovich durante o governo de Stálin e teve alguns de seus livros proibidos em países – digamos – mais conservadores, a única forma de aliviar o sofrimento é buscar um refúgio – seja na arte, política ou religião. E isso é algo que Paul não conseguiu fazer. Na verdade, nem tentou. O desinteresse do jovem – e também do homem já maduro – a respeito daquilo que não é espelho é, justamente, o que o sufoca – e choca as pessoas.
Paul vai perdendo a fibra, deixando de lado tudo o que poderia servir de contato com o outro. É um caminho sem volta, uma espécie de prelúdio anunciado à tragédia e à indiferença. Barnes justifica essa escolha por meio de uma narrativa repleta de frieza e descompasso. “Tchekhov dizia que quanto mais você quer tocar a alma do leitor, mais frio deve ser”, disse ao El País, e parece ter seguido à risca a dica do russo.
A única história é uma comédia de erros e um olhar singular sobre o passado, uma lição sobre a anatomia da moral e do amor. Aos 73 anos, Julian Barnes mostra que é um dos escritores mais relevantes de nossos tempos, capaz de seduzir o leitor sem precisar apelar para estratégias que desconstruam o poder de sua narrativa.
A ÚNICA HISTÓRIA | Julian Barnes
Editora: Rocco;
Tradução: Léa Viveiros de Castro ;
Tamanho: 220 págs.;
Lançamento: Junho, 2018.
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