Arecente descoberta de páginas encobertas do Diário de Anne Frank revela o limite ético entre a vontade do escritor, a curiosidade de seus leitores e os desígnios de seus herdeiros. O texto, que ficou escondido sob folhas de papel pardo por mais de 7 décadas, tem temática sexual. Segundo nota da Casa de Anne Frank, responsável por gerir o espólio da autora, ainda não há previsão para que a descoberta seja transcrita e divulgada, afirmando apenas que acontecerá “em breve”.
O jornal Nexo, em reportagem publicada em 16 de maio, um dia após o anúncio do achado, diz se tratar de “piadas sujas”, referências à menstruação e a casas de prostituição parisienses. Para Peter de Bruijn, do Instituto Huygens pela História da Holanda, a importância desses excertos está na qualidade e na pretensão literária de Anne Frank, que à época tinha apenas 13 anos. “Ela inicia conversando com uma pessoa imaginária, falando sobre sexo, assim, cria uma espécie de ambiente literário para escrever sobre um assunto com o qual, talvez, não estivesse confortável”, avalia. Em outra passagem, publicada na então versão definitiva do livro, Anne usa a amiga fictícia Kitty para contar alguns relatos.
Porém, o principal motivo para que o conteúdo das páginas não fosse revelado pode ser o medo de que o pai descobrisse aqueles trechos apimentados. Ainda que as páginas secretas não tragam, necessariamente, nenhuma grande revelação a respeito da vida da família Frank, em especial de sua autora, é interessante pensar como a adolescente – em plena Segunda Guerra – observava a questão sexual.
O dilema de publicar ou não aquilo que o autor considera inadequado levanta uma questão moral. Deve-se respeitar o desejo do autor ou, por outros motivos, deve-se trazer à luz ‘textos pedidos’?
Por outro lado, o dilema de publicar ou não aquilo que o autor considera inadequado levanta uma questão moral. Deve-se respeitar o desejo do autor ou, por outros motivos, deve-se trazer à luz “textos pedidos”? Bem, não fosse Max Brod desrespeitar o pedido do amigo Franz Kafka, que lhe solicitara uma pira com seus cadernos, estaríamos impedidos de ler importantes obras da literatura mundial. Obviamente, Brod não deu vida aos escritos do tcheco por aspirações financeiras, ao contrário, havia ali muito mais um respeito pela memória literária do autor d’O Processo.
No outro lado desse ringue temos as publicações de obras póstumas de nomes como o chileno Roberto Bolaño ou a poetisa norte-americana do século XIX Emily Dickinson. O argetino Julio Cortázar deixou, em seus arquivos, contos, discursos e textos diversos que foram – e ainda são – publicados. Mas cabe a quem decidir se as gavetas bojudas merecem ver a luz do dia? Maria Kodama, viúva de Borges, se encarrega até hoje de publicar e republicar a obra do marido. Anos atrás, exigiu a prisão de Pablo Katchadjian que “engordou” o conto “O Aleph”.
Não existe, como se pode imaginar, uma decisão final sobre casos póstumos. O que vale, mais que tudo, é o bom senso em relação à motivação e o propósito de determinados trabalhos ganharem as prateleiras. Se os “novos” escritos de Anne Frank serão mesmo partilhados, não se sabe, mas o certo é que a polêmica a discussão ética não irão cessar tão cedo.