Ao longo da primeira metade do século XX, o mundo foi convulsionado por duas Guerras Mundiais que abalaram a fé no progresso da humanidade. No plano político, vimos surgir o bolchevismo e a União Soviética, que puseram fim ao império da Dinastia Romanov. Paralelamente, a Europa era arrastada pela reação nazi-fascista. No campo da estética, essa convulsão pôde ser notada ainda no final do século XIX e, posteriormente, com o advento das vanguardas como o dadaísmo, o cubismo, o futurismo, o surrealismo, o construtivismo e o expressionismo. Nessa perspectiva, o historiador britânico Eric Hobsbawm caracterizou o século XX como a era dos extremos.
É nesse contexto que a obra de Guillaume Apollinaire (1880 – 1918) ganhou repercussão, tendo sido um dos artistas mais influentes da vanguarda parisiense. Poeta, dramaturgo e crítico de arte, Apollinaire agitou e escandalizou o bon monde francês nas primeiras décadas do século passado. Parte das polêmicas envolvendo o autor de Calligrammes está vinculada à falsa acusação pelo roubo da Mona Lisa, em agosto de 1911, no Museu do Louvre. Essa incriminação fez com que o poeta ficasse encarcerado durante uma semana, sendo liberado após esse período. O episódio é descrito no ensaio “Varas, virgens e vanguarda”, presente em Perversos, Amantes e Outros Trágicos, de autoria da professora de Literatura Brasileira da USP, Eliane Robert Moraes.
Todavia, o lançamento de As onze mil varas (Editora Iluminuras, 2017, tradução de Letícia Coura) apresenta outro aspecto não menos importante da obra de Guillaume Apollinaire, a saber, a produção de narrativas eróticas.
Foi o próprio Apollinaire, em um de seus ensaios, que deu origem ao termo surrealismo, retomado e desenvolvido anos depois por André Breton em seu Manifesto Surrealista (1924). Com efeito, foi Les demoiselles d’Avignon, de Picasso (tela marco do cubismo) que influenciou diretamente a obra de Apollinaire. Amigo de Georges Braque e entusiasta do criador de Guernica, sua poesia passou a flertar e ser associada ao cubismo literário, sobretudo Zone, poema de abertura de Álcoois (1913).
Literatura erótica, novela libertina
No ano de 1907, Apollinaire publica anonimamente, em Paris, a novela libertina As onze mil varas, retomando uma tradição que remonta à literatura licenciosa de autores como o Marquês de Sade (1740 – 1814), a quem o próprio Apollinaire ajudou a divulgar os romances no século XX. Ao comentar no posfácio sobre a tradição dessa literatura escandalosa, Oscar Cesarotto destaca que tratam-se de livros “destinados a serem lidos com uma mão só”, o que poderia chocar alguns leitores mais pudicos, como a passagem a seguir: “A pica desceu entre as nádegas frescas e empenhou-se num vale que ia dar na buceta. As mãos do jovem, pela frente, exploravam o tufo e provocavam o clitóris. Ele vai e vem, explorando com a relha de seu arado o sulco de Alexine que se deleitava agitando a bunda lunar da qual a lua lá no alto parecia sorrir admirando-a”. (p. 94)
Durante os nove capítulos, o leitor mergulha em cenas de devassidão, horror e humor negro, numa sequência de orgias selvagens. Ambientado entre “Oriente e Ocidente”, o narrador acompanha a saga do Príncipe libertino Mony Vibescu por Bucareste, Paris, Belgrado e Port Arthur. De passagem por cada localidade, Mony Vibescu preocupa-se apenas em satisfazer seus apetites sexuais, entregando-se desordenadamente a bacanais dionisíacos com homens e mulheres chinesas, russas, suecas, polonesas e francesas, fomentando a libertinagem e a volúpia em cabarés, hotéis luxuosos, vagões de trem ou trincheiras de guerra.
Na sequência desses encontros, passagens eróticas são alternadas com cenas de incesto, necrofilia, escatologia e bestialidade, conciliando o cômico e o grotesco. Como afirma Georges Bataille em O erotismo, “essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação”. Isso explica, por um lado, o fato de muitas orgias promovidas por Mony terminarem em assassinatos, incluindo o próprio protagonista, que morre no final da narrativa. Como diz o personagem capitão Katache: “não concebo de maneira alguma a volúpia sem a dor”.
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