O ano de 2022 foi puxado. Em meio a um processo eleitoral no qual, ao que tudo indica, a democracia foi salva, a literatura foi um lugar de refúgio contra o medo representado por uma das campanhas.
Em um cenário que as mulheres tiveram grande força em derrotar o autoritarismo nas urnas, não é exagero afirmar que este tenha sido um ano das mulheres na literatura.
A francesa Annie Ernaux foi a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura; a portuguesa Alexandra Lucas Coelho ficou com o Prêmio Oceanos, a primeira vez que uma obra de “crônicas” obteve essa distinção; o livro de Luiza Romão venceu o Prêmio Jabuti de Livro do Ano; Micheliny Verunschk ganhou a categoria Romance Literário do mesmo Jabuti, que pela primeira vez só teve autoras entre as finalistas.
Reunimos convidados e integrantes de nossa equipe para que cada um pudesse apontar quais foram suas obras favoritas desse ano. Cada jornalista também incluiu outros destaques deste ano. Confira.
Rodrigo de Lorenzi
‘Solitária’ | Eliana Alves Cruz
Foi um ótimo ano para Eliana Alves Cruz. Além de vencer na categoria Conto no 64º Prêmio Jabuti, também colecionou elogios com seu quarto romance, Solitária (Companhia das Letras, 2022), obra que escancara um dos projetos arquitetônicos mais nefastos do Brasil: o quartinho da empregada.
Na obra seguimos a história de duas mulheres negras, Mabel e Eunice, mãe e filha, que moram no trabalho, um condomínio de luxo que carrega em sua estrutura um símbolo de segregação racial ainda tao latente por aqui. Eunice, a mãe, testemunha um crime ocorrido na casa dos patrões. Mabel, a filha, criada já em outra realidade, é a peça principal que vai ajudar não apenas na resolução do crime, mas fará uma mudança na vida das pessoas, especialmente a da mãe, que por anos segue uma subserviência cruel ao lado de patrões racistas.
Com uma narrativa simples e pungente, Eliana Alves Cruz faz do seu livro um relato intenso de como o Brasil inaugurou o conceito do quartinho da empregada não apenas como um ambiente, mas como símbolo de um espaço limitado a corpos negros. A situação humilhante de ter que levar os filhos pequenos para o trabalho também é posto de forma brilhante na obra, especialmente quando acompanhamos o ponto de vista de Mabel, que assiste e estranha a forma com a qual outras crianças são tratadas dentro daquela casa, enquanto ela está restrita a um lugar apertado e calorento.
Um grande livro para sentirmos as consequências da escravidão moderna e a síndrome do pequeno poder da branquitude classe média.
“É curioso reparar como algumas pessoas nesse mundo não têm direito à meninice. Quando ainda mal se sustentam em cima das pernas, são vistas como adultas; enquanto outras serão para sempre garotas e garotos. Em geral, as primeiras frequentam quartinhos como eu.”
Outros destaques para Rodrigo de Lorenzi em 2022:
- O Beijo do Rio, Stefano Volp
- Quão Bela e Brutal É a Vida, Cory Anderson
- Os Abismos, Pilar Quintana
- A Casa de Doces, Jennifer Egan
Maura Martins
‘Uma tristeza infinita’ | Antônio Xerxenesky
O livro vencedor do Prêmio São Paulo em 2022 faz jus a todo o reconhecimento que tem obtido. É uma obra densa, emotiva, mas de leitura fluida, com várias camadas. Na superfície, acompanhamos a história de um médico psiquiatra francês que atende pacientes em uma clínica na Suíça, durante o período do pós-guerra.
Ele se depara com as mudanças gradativas nos tratamentos das doenças mentais: o método investigativo do inconsciente proposto por Freud está aos poucos abrindo espaço para soluções químicas, com a invenção de novos remédios que promovem melhoras rápidas. Por consequência, provoca que os médicos tenham que repensar quis seriam as causas dessas doenças e por que certas pessoas são mais impactadas pelos traumas do que outras.
Mas há outra chave, atualíssima, para se ler Uma tristeza infinita. O romance aborda as possibilidades de se seguir em frente após nos depararmos com a morte de nossas ilusões. Com continuar vivendo depois de nos confrontarmos com a face mais humana do mal – como as atrocidades do nazismo, ou como o fato de dividirmos o mesmo país com sujeitos que veem legitimidade em tortura e em violência? Todos estes temas, de uma forma ou outra, seguem incomodando após a leitura do belo romance de Antônio Xerxenesky.
Outros destaques para Maura Martins em 2022:
- Agora Agora, Carlos Eduardo Pereira
- A gente mira no amor e acerta na solidão, Ana Suy
- Caderno proibido, Alba de Céspedes
- O negócio do Jair: A história proibida do clã Bolsonaro, Juliana Dal Piva
Fátima Simas
‘Caderno proibido’ | Alba de Céspedes
Caderno proibido é uma obra meticulosamente costurada. Ainda que a premissa possa não ser tão inventiva, a maneira como Alba de Céspedes conduz sua narrativa torna o livro notável. A autora oferece a seus leitores um exemplo de como é possível fazer de argumentos aparentemente batidos a base para algo revigorante e realmente profundo.
Fui tocada pelas nuances e o cuidado como Céspedes apresenta a interioridade de Valeria, sua protagonista. Um romance tão psicologicamente rico, escrito com um olhar aguçado para as maneiras pelas quais somos falíveis, passíveis de nos contradizer, ou até mesmo de omitir verdades desconfortáveis.
Seu diário vira a testemunha dos registros nos quais ela se mostra sintonizada com a dinâmica de gênero, trabalho e dinheiro, aspectos para os quais a família é um microcosmo para essas questões. A autora italiana nos entregou um livro incisivo, lúcido, incandescente, um estudo de personagem intrigante. Uma prova clara de como pode ser incrível investir nos pequenos dramas da vida cotidiana para falar sobre algo maior.
Outros destaques para Fátima Simas em 2022:
- Quando deixamos de entender o mundo, Benjamín Labatut
- Vila Sapo, José Falero
- Solitária, Eliana Alves Cruz
- O Acontecimento, Annie Ernaux
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