Se coubesse à literatura realista – ainda que esse seja um conceito para lá de questionável – retratar a condição humana, não restaria nada além de um silêncio gigantesco. Mesmo assim, algumas obras parecem refletir sobre seus contextos de uma maneira única – e de tal maneira surgiram certos clássicos – que chega a ser impossível dissociar uma coisa da outra. Operar nesse contexto é caminhar sobre o ponto limite entre realidade e ficção, fato e dado. É o que fez Welles durante a sua leitura de A Guerra dos Mundos e provocou um alvoroço ao ter ser teatro radiofônico ser recebido como verdade. E é a sensação que provoca 17 de abril, conto de Davi Boaventura, cuja linguagem extrapola o limite do literário e passa a transitar no campo histórico.
Boaventura – que em Mônica vai jantar já havia escancarado as contradições de um povo permissivo e conservador, moralista e corrupto – tece em 17 de abril o pretérito mais que perfeito para a ascensão do bolsonarismo. Partindo do golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência – que teve como ápice a votação futebolística em deputados exaltaram Deus, a família e propriedade –, o conto reflete sobre o esgarçamento da democracia e o discurso extremista suavizado pela banalidade de uma ironia popularesca.
Sem cair na armadilha da emulação de um discurso bom-mocista e na falsa eminência da “literatura urgente”, Davi Boaventura coloca na mesa as dissenções que moldam as relações, desde então. Como Tezza, em A Tensão superficial do tempo, existe um quê de estranheza e absurdo que não faria sentido na ficção: só funciona na realidade pautada pela estreiteza de juízo e de leviandade de caráter. É, podemos dizer sem exagero, uma sátira realista de um povo liliputiano, que não deseja crescer, que se acomoda na sua imensa pequenez.
É sobre essa construção ideológica – que passa do simbólico para o concreto, que atravessa o cotidiano como um vírus – que se debruça 17 de abril. Ao mesmo tempo, é um retrato do panis et circenses, da alienação que perdura como modus operandi brasileiro e que soa com uma naturalidade desconcertante.
“(…) mas ele não vai, ele se senta em uma cadeira vagabundíssima bem no momento em que os donos da casa voltam da sala de estar com uma tevê enorme equilibrada nos braços pra instalar o aparelho na mesa do quiosque, embaixo dos balões e da bandeira do Brasil, no que parece ser quase uma festa de aniversário, sendo que de repente alguém está, de fato, distribuindo chapéus de festa e vuvuzelas (…)”
Nesses tantos conflitos, que trazem à tona os muitos problemas estruturais, o narrador de Davi Boaventura explora a verborragia da indignação não como uma bandeira a ser levantada, mas como uma voz que grita em silêncio enquanto o fogo se alastra. Esse jogo de espelhos não se leva pela fetichização da revolta – elemento que é o cerne, por exemplo, de Marrom e amarelo, de Paulo Scott –, mas tenta enxergar com certa crueza a realidade e os fatos. Nesse sentido, a linguagem é a própria realidade, não o meio para um fim – como em Torto arado, que separa esses dois pontos em universos tão distintos que, em alguns momentos, soa como se não coabitassem o mesmo livro.
Davi Boaventura tem as farpas nos dedos de Christopher Hitchens (1949 – 2011) e a estrutura convulsionada de Foster Wallace (1962 – 2008).
Pós-moderno
17 de abril é uma narrativa pós-moderna por excelência, que condensa a experiência real como síntese da produção ficcional. A originalidade vem do ready-made e do mash-up, da reconstrução a partir dos destroços daquilo que se entende como História. Isso, é verdade, já aparece em Mônica vai jantar, mas no conto soa como o eixo que percorre boa parte das linhas. Tanto assim é que um dos discursos mais viralizados de Dilma – “todo mundo vai perder”, ela disse certa feita e se transformou em coqueluche – assume uma faceta profética.
Esse não é único aspecto que reflete os simbolismos do golpe e das rupturas sociais que essa movimentação causou. Lá para o final, Boaventura oferece ao leitor uma das cenas mais interessantes de seu breve relato polifônico:
“Geralmente ele não sonha por causa do remédio, mas hoje acaba acontecendo e ele se vê em um sonho meio confuso que envolve um banheiro fétido e um amigo de infância tentando forçá-lo a beber água do vaso sanitário sujo de merda (…).”
Davi Boaventura tem as farpas nos dedos de Christopher Hitchens (1949 – 2011) e a estrutura convulsionada de Foster Wallace (1962 – 2008). Ao que se vê, 17 de abril é cortante e cínico, sem amarras e com um possibilidade semântica quase inesgotável. É o resultado de um povo heroico que perdeu o fôlego e se acovardou diante de uma ignorância retumbante.
17 de abril (Coleção Contém 1 Drama) | Davi Boaventura
Editora: Não Editora;
Tamanho: 29 págs.;
Lançamento: Abril, 2021.