Pense em quantas vezes você já cruzou com artistas nas ruas, apresentando aquilo que sabem e tentando ganhar algum sustento. Podem ser os musicistas que empunham seus instrumentos em plenas praças, os cartunistas que pedem para pintar o seu retrato, ou as estátuas humanas paradas em pontos estratégicos, exercendo uma arte plácida, calada, que comove pela resistência.
Quando lembrar de todos eles, proponha a si mesmo um questionamento, fazendo uso da honestidade que só a introspecção é capaz de dar. Pergunte-se: quantas vezes você não considerou fácil ou simplório o que eles fazem? Quantas vezes não gritou (mentalmente, é claro) “vá trabalhar!”, quantas vezes pensou que pedir é muito mais fácil que fazer algo? Amplie a questão: quantas vezes você não confundiu pedir com mendigar, perder a dignidade; quantas vezes, na sua própria vida, você se sentiu envergonhado de precisar da ajuda de alguém?
De alguma maneira, a relação entre os artistas, suas obras e seus fãs – e como esta relação poderá, a curto prazo, ser fator primordial a sustentar a própria existência da arte – é o grande tema de A Arte de Pedir (editora Intrínseca), obra da artista multimidiática Amanda Palmer, que se tornou conhecida do grande público após um feito: em 2012, depois de se livrar de um contrato com uma gravadora major, ela abriu um financiamento coletivo para produzir o álbum de sua banda. O pedido buscava arrecadar apenas cem mil dólares, mas foi um fenômeno imprevisto: em sete dias, Amanda havia angariado um milhão, tornando-se a maior campanha registrada pelo site Kickstarter.
O fenômeno trouxe uma visibilidade maior ao trabalho de Amanda, que se tornou imediatamente uma voz a ser ouvida quando o assunto é as novas relações comerciais mantidas em uma economia cada vez mais colaborativa, quando o sucesso dos empreendimentos não mais poderá ser medido apenas em termos financeiros. Artistas como ela vislumbram um futuro em que mais importante que números (como, por exemplo, a quantidade de discos que um artista vende por uma grande gravadora, o que escraviza os musicistas às vendas estratosféricas para conseguir ter alguma relevância) são as relações horizontais, as conexões com os fãs, os vínculos formados entre quem cria e quem, de alguma forma, viabiliza esta obra por se sentir ligado a ela.
Trata-se, afinal, de uma mudança profunda na economia, que prevê um caminho em que as grandes corporações perdem força, em detrimento a novos sistemas baseados na cooperação e na confiança. Essas transformações vão muito além dos processos artísticos: basta ver, por exemplo, o crescimento de empreendimentos como o Uber e o Airbnb, que fornecem serviço de transporte e de hospedagem sob uma perspectiva mais intimista, marcada pela proximidade e pela colaboração mútua.
Após o sucesso de sua campanha no Kickstarter, Amanda Palmer foi convidada para fazer uma palestra no conhecido Ted Talks, intitulada “A Arte de Pedir”- cuja repercussão acabou gerando o convite para o registro em livro de suas histórias. A obra é um compêndio das memórias de Amanda e de sua trajetória enquanto artista – incluindo, aliás, um expressivo trabalho como artista de rua, trabalhando como estátua viva em praças de Boston. Ficava parada com uma roupa de noiva em cima de um engradado de leite, encarnando uma nubente etérea de mais de dois metros.
Amanda amadurece as teses que serão defendidas ao longo do livro: é preciso coragem para pedir e, mais do que isto, coragem para receber. É muito mais fácil dar algo a alguém do que aceitar o que o outro tem para nos dar.
A partir desta experiência, Amanda amadurece as teses que serão defendidas ao longo do livro: é preciso coragem para pedir e, mais do que isto, coragem para receber. É muito mais fácil dar algo a alguém do que aceitar o que o outro tem para nos dar. Precisamos ter força para vencer “a patrulha da fraude”, aquela incansável voz interna que nos diz que nunca somos bons o suficiente no que fazemos. Os artistas, sobretudo, enfrentam diariamente este boicote da voz que denuncia a fraude, pois estão eternamente “condenados” a trabalhar e a viver daquilo que transcende as necessidades práticas da vida cotidiana (ou seja, ouvem a todo momento os gritos calados do “vai trabalhar”). Mas precisamos reconhecer que eles fornecem um serviço que precisa ser visto como essencial para que possamos permanecer humanos. Acima de tudo, os artistas oferecem empatia, conexão, vínculo – e desejam ser vistos de fato, e não simplesmente olhados.
O estilo de Amanda é absolutamente intimista, e tenta reproduzir ao leitor o mesmo tipo de proximidade que ela mantém com seus seguidores nas redes sociais. Ler A Arte de Pedir é, de alguma forma, sentir como se estivéssemos dialogando com ela em algum bar ou em um dos inúmeros eventos que promove com sua banda e seus parceiros. Sua estratégia para este tom confessional é parecer indiscutivelmente honesta, buscando rir de si mesma e compartilhando detalhes de sua vida pessoal para ilustrar suas argumentações. Para exemplificar como foi o seu tortuoso aprendizado para aprender a pedir (e receber) a ajuda alheia, ela traz detalhes do seu casamento com o escritor Neil Gaiman, que teve que rebolar para convencer Amanda a querer se casar (ela é completamente avessa a compromissos formais) e, posteriormente, a receber seu dinheiro em situações de necessidade, mesmo já estando casados.
Uma crítica possível ao livro é considerá-lo como obra de autoajuda, uma vez que ele está sim carregado de frases otimistas e inspiradoras, baseadas nas convicções de Amanda. Ela se propõe a desempenhar um papel de “guru” aos seus leitores, como uma amiga sábia e que já fez parte das constatações necessárias ao longo da vida para uma existência mais plena.
Contudo, conforme já argumentei em outro texto, penso que definir esta obra como autoajuda seria uma redução injusta à mensagem que ela faz difundir, que diz muito mais sobre as relações (econômicas, pessoais, profissionais) na contemporaneidade do que, necessariamente, funciona como um manual edificante cercado de lições morais. Vale lembrar, inclusive, que Amanda não se priva de descrever as furadas em que já se meteu por sua excessiva confiança nas pessoas. Nestes momentos, a solução para não se decepcionar com toda a humanidade, segundo ela, é entender aqueles que traem a sua doação como a exceção que fortalece a regra – que as pessoas, em essência, são boas e agirão de modo desprendido e amoroso frente àqueles com quem se conectam.
Ler A Arte de Pedir me fez lembrar de uma lógica circulante, que ouvia desde pequenininha, e que sempre me causou certo estranhamento. Quando criança, sempre ouvia comentários sobre o quanto dar algo a alguém deveria ser mensurado sempre numa relação de equilíbrio, e não por uma motivação espontânea. Por exemplo: ao escolher um presente para um coleguinha que estava de aniversário, eu sempre deveria me lembrar se este colega havia ou não me dado algo no meu aniversário anterior (e, claro, qual foi o “preço” deste presente).
Isso se estendeu a muitas coisas na vida, fazendo introjetar uma ideia que sempre me foi estranha: quem dá mais do que recebe é inevitavelmente um bobo, um trouxa, um explorado. Assim, ao fazer uma ode ao ato afetuoso de dar sem medir, sem esperar a reciprocidade, Amanda Palmer se torna uma porta voz àqueles que ainda acreditam na real conexão entre os indivíduos – algo que só se torna real quando a entrega amorosa é, em si, mais do que suficiente.
Por fim, uma coisa é fato: quem lê A Arte de Pedir nunca mais consegue ser indiferente às estátuas vivas na rua.
A ARTE DE PEDIR | Amanda Palmer
Editora: Intrínseca;
Tradução: Denise Bottmann;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Março, 2015.