Ao lado de Julio Verne, H.G. Wells é tido como um dos pais da tradição de ficção científica na literatura mundial. Ambos deram continuidade ao trabalho que Mary Shelley iniciou em 1818, ao lançar Frankenstein, mas que ficou isolado. Os dois escritores publicaram obras que compartilhavam como característica central o papel da ciência e das inovações tecnológicas como motor da trama, estruturando uma nova forma do romance.
O contexto em que estavam inseridos foi favorável. Com Verne morando na França e Wells na Inglaterra, tanto o imperialismo europeu quanto a revolução industrial na metade do século XIX serviram de munição para o trabalho. No caso de H.G. Wells, as questões sociais despertadas com as ações do império britânico se tornaram alvo de reflexão dentro dos seus trabalhos: de um lado a política interna, do outro a externa. Enquanto o primeiro se apresentava por meio das classes sociais, desbocando em conflitos como o entre os seres da superfície e as bestas do subsolo na cidade de A Máquina do Tempo, o outro trazia visões sobre as ações colonialistas da nação inglesa, tema de grande destaque em A ilha de Dr. Moreau.
Diferentemente dos outros romances científicos “puros” de H.G. Wells, A ilha do Dr. Moreau é uma mescla entre a ficção científica e o romance de aventura em lugares exóticos – formato influenciado pelo próprio Verne e outros livros de ação que circulavam, como A ilha de coral, de R. M. Ballentyne, e A ilha do tesouro, de R. L. Stevenson. De acordo com a introdução de Bráulio Tavares, esses livros “são referências importantes para A ilha do Dr. Moreau, porque aquela foi uma época de aventuras literárias em mares ou terras distantes, refletindo o lado otimista e eufórico do colonialismo”. Da mesma forma que anos depois William Golding repensaria A ilha do coral em Senhor das Moscas, Wells apresentou o lado sombrio dessa mesma colonização.
Nessa novela, ouvimos o relato de Edward Prendick, um náufrago que foi resgatado pelo ajudante de um misterioso cientista. Depois da ajuda, Prendick passa a morar na ilha isolada onde ambos viviam com uma colônia de seres estranhos. Logo em seus primeiros dias, após observar os estranhos habitantes e passar dias inteiros ouvindo gritos horrendos, Prendick desenvolve uma teoria de que o cientista daquela ilha esta empenhado em transformar homens em animais, mas o que logo descobrimos é que ocorre justamente o contrário: Dr. Moreau tenta transformar animais em homens.
O contexto em que estavam inseridos foi favorável. Com Verne morando na França e Wells na Inglaterra, tanto o imperialismo europeu quanto a revolução industrial na metade do século XIX serviram de munição para o trabalho.
A interpretação que se pode ter sobre o livro de Wells gira ao redor do choque entre os civilizados e os primitivos. Sob a defesa do progresso, não civiliza os últimos, mas animaliza a todos. Como escreveu Bráulio, “é da natureza do colonialismo usar por um lado um discurso missionário e civilizatório (…) e por outro uma prática que acaba por desumanizar os próprios civilizados”. Tanto por conta dessa postura que o livro teve uma recepção polêmica.
Um dos pontos em que sua crítica perpassa é a visão ácida sobre os rituais religiosos e políticos, visto no processo de humanização utilizado por Moreau. O método utilizado pelo cientista é sustentado por duas partes: a externa, baseada na mutilação do corpo do animal, que deve se tornar antropomórfico; e a interna, que transforma a mentalidade do animal por meio da hipnose e da fixação mental das Lei de Moreau, mandamentos repetidos à exaustão até que uma lavagem cerebral se complete. Tais regras são apresentadas na obra de maneira semelhante aos rituais religiosos cristãos, equiparando Deus à figura de Moreau.
Com Moreau, Wells também ajudou a cristalizar a ideia do cientista maluco, como Victor Frankenstein ou Dr. Jekyll. Além disso, como destacado por Bráulio Tavares, o livro se insere na tradição literária de histórias que se passam em ilhas remotas, governadas por indivíduos todo-poderosos que ficam ali realizando experiências: “o isolamento da ilha confere poderes quase divinos a esse indivíduo, que de certa forma brinca de ser Deus (…) com todos aqueles que ali aportam por acaso”. Mas apesar disso, Moreau não chega a ser uma figura trágica da mesma maneira que Victor Frankenstein: não há impulsos altruístas em suas ações, apenas uma curiosidade mórbida que o leva a praticar, de maneira gratuita, a vivissecção nos animais, guiado pelo capricho e pelo método científico.
Tal visão crítica é construída na percepção de que não há diferenças substanciais entre os humanos e o povo animal. Além disso, Wells constrói uma atmosfera de suspense que paira na ilha: desde o começo do relato, sabemos que não há provas sobre a veracidade do que Prendick nos diz, que ele está em péssimo estado físico e psicológico constantemente e que cometeu severos erros de interpretação junto de severos julgamentos éticos.
A ILHA DO DR. MOREAU | H.G. Wells
Editora: Alfaguara;
Tradução: Braulio Tavares;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2012.