Uma das cenas mais estarrecedoras a que assistimos esse ano (em que o páreo tem sido duro no quesito “cenas estarrecedoras”) foi um momento ocorrido durante a CPI das Fake News, quando um sujeito chamado Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário da empresa Yacows – especializada em marketing digital e no envio em massa de mensagens para usuários via WhatsApp – prestou um depoimento falso no Congresso.
Nascimento foi fonte de uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, que começava a desvendar a compra fraudulenta de dados pessoais de usuários e de envio de mensagens de cunho político por empresários ligados ao presidente Bolsonaro. No depoimento, Nascimento mentiu e insultou publicamente a repórter a quem tinha concedido sua entrevista, Patrícia Campos Mello: disse que a profissional teria tentado obter informações com ele em troca de sexo.
O caso, amplamente repercutido pela imprensa, por representantes políticos e por diversas organizações, foi uma espécie de gota d’água frente à enxurrada de manipulação, distorções e notícias falsas que têm acometido o país e que tiveram papel fundamental no último pleito eleitoral em 2018, quando Bolsonaro e uma grande quantidade de políticos associados a ele foram eleitos.
Mas como esses indivíduos, com suas falas ultrajantes e com pouquíssimas propostas concretas, conseguiram chegar ao poder? É em torno dessa discussão que gira o livro A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, da própria jornalista Patrícia Campos Mello, premiadíssima repórter com trabalho reconhecido em coberturas de guerra.
O livro é um misto de reportagem e ensaio, desdobrando, de forma sucinta e esclarecedora, vários temas que transcendem a esfera jornalística e dizem respeito aos impactos do cenário atual.
O livro é um misto de reportagem e ensaio, desdobrando, de forma sucinta e esclarecedora, vários temas que transcendem a esfera jornalística e dizem respeito aos impactos do cenário atual (em que o jornalismo profissional é questionado e sabotado cotidianamente por líderes tecnopopulistas, como Bolsonaro, Donald Trump, nos Estados Unidos, e Viktor Órban, na Hungria) na vida dos cidadãos.
A máquina do ódio tem como trunfo, portanto, o tom didático, mas não redutor, tornando a discussão trazida aqui – sobre como funcionam esses mecanismos coletivos de persuasão explorados de forma magistral por meio das redes digitais – acessível a todo indivíduo que quiser saber sobre o assunto.
A obra gira em torno de dois eixos. No primeiro deles, voltado à reportagem, temos acesso aos bastidores do trabalho de profissionais como Patrícia, sabendo detalhes do processo de apuração, checagem e redação de matérias, como a que deu origem à reportagem “Fraude com CPF viabilizou disparo de mensagens de WhatsApp na eleição” – a mesma que fez a jornalista mergulhar, de forma involuntária, em um submundo de ofensas públicas no tribunal da internet. Um inferno que, claramente, sofre influência pelo fato de ela ser mulher e, por isso, estar propensa a ataques misóginos – autorizados e potencializados pelas falas do presidente Bolsonaro e sua claque.
Neste sentido, o livro parece dialogar bastante com Ela disse – os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo, em que as jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey detalham todo o minucioso percurso que levou à publicação da reportagem no The New York Times que denunciou os diversos casos de assédio sexual e estupro do produtor de cinema Harvey Weinstein. Em ambas as obras, as jornalistas parecem nos levar pela mão para conhecer os meandros do processo de produção do jornalismo profissional – e, nesse sentido, configuram como verdadeiras aulas a jovens repórteres e também aos leigos.
Já o segundo eixo de A máquina do ódio envolve diretamente a pauta que busca esclarecer: os mecanismos utilizados pelos governos populistas modernos para manipular a opinião pública a partir da difusão de fake news ou informações tendenciosas, mas, mais do que isso, pelo gradativo e eficiente trabalho de deslegitimação da imprensa. Sua discussão busca mostrar as peças dessa “máquina”, que intenta fazer com que uma vasta quantidade de cidadãos tenha acesso a conteúdos que exploram sentimentos adversos (como o ódio, a sensação de insegurança, o desprezo ao conhecimento científico) e insuflam a ideia de que todos estamos sendo enganados por uma chamada mídia “ideológica”. Ocorre, no entanto, que a maior parte desses mecanismos é acionada por meio de práticas ilícitas no Brasil – como, por exemplo, a compra ilegal de dados pessoais, a contratação de empresas por partidos políticos por meio de caixa 2. Não por acaso, a reportagem original da Folha de São Paulo, de autoria de Patrícia Campos Mello e Artur Rodrigues, levou à própria constituição da CPI, conforme descrito na abertura deste texto.
Neste segundo eixo, o livro discute os efeitos já sentidos em diversos países desse processo antidemocrático mobilizado por políticos autoritários, que têm conseguido, a passos largos, consolidar a ideia de que o jornalismo profissional seria um inimigo da população e não o contrário – e que o caminho da verdade estaria na comunicação direta com o povo, sem intermediações. Uma falácia, obviamente, que de tanto dita se tornou crível para boa parte das pessoas.
Mas por mais turbulento que seja o momento, Patrícia Campos Mello encerra sua obra com otimismo: observa que o cenário do ódio fabricado é propulsor também de um outro movimento, que revaloriza o jornalismo profissional e a confiança nas instituições sérias de imprensa. Afinal, se podemos afirmar que há algo de positivo no que estamos vivendo, é que estamos reacendendo a chama do verdadeiro jornalismo: aquele realizado pelos “cães de guarda”, os profissionais que lutam em prol do interesse público e da fiscalização das autoridades. O resto é secos e molhados, já dizia Millôr Fernandes.
A MÁQUINA DO ÓDIO: NOTAS DE UMA REPÓRTER SOBRE FAKE NEWS E VIOLÊNCIA DIGITAL | Patrícia Campos Mello
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 196 págs.;
Lançamento: Julho, 2020.
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