Hoje gostaria de tecer alguns comentários sobre a obra A Ponte dos Três Arcos (Objetiva, 1999, tradução de Adalgisa Campos da Silva), do escritor albanês Ismail Kadaré (1936).
Kadaré, como muitos autores daquela “outra Europa”, tem uma “vida dupla”. Vive até 1990 na Albânia e, então, pede asilo na França, onde vive até hoje. As relações do escritor com o regime de Enver Hoxha são complexas e não é minha intenção analisar este tópico.
Talvez Kadaré seja mais conhecido, no Brasil, pela obra Abril Despedaçado, adaptada para cinema sob a direção de Walter Salles. A Ponte dos Três Arcos parece não ter despertado grande atenção – o que é uma pena. Neste espaço, então, dedico-me a esta obra.
O leitor deste livro lerá um romance histórico com traços de terror. Palavras como “sombrio”, “sinistro” e “maldição” permeiam o livro, estão lá o tempo inteiro, até mesmo no nome do próprio rio sobre o qual se construirá a ponte: o Ouyane maldito.
O leitor deste livro lerá um romance histórico com traços de terror. Palavras como ‘sombrio’, ‘sinistro’ e ‘maldição’ permeiam o livro, estão lá o tempo inteiro, até mesmo no nome do próprio rio sobre o qual se construirá a ponte: o Ouyane maldito.
Também importante, o leitor lerá uma crônica medieval, dividida em LXI capítulos, alguns mais longos, outros mais curtos, que teria sido escrita pelo “monge Gjon, filho de Gjorg Oukshama, sabendo que nada existe em nossa língua sobre a ponte do Ouyane maldito” (p. 9).
Narra-se a história da construção de uma ponte sobre um rio especialmente virulento, tão virulento que, no original albanês, o nome é Ujana e Keqe (As Águas Malditas). A construção da ponte, que funcionaria como bálsamo para a população, ameaça os interesses do grupo “Balsas e Jangadas”, que faz a travessia do rio.
Um vidente diz que uma ponte será construída, pois esta é a vontade de Deus. Uma senhora, algo louca, algo bruxa, diz que, ao contrário, a construção da ponte será uma ofensa ao rio e a Deus – a velha Aïkoune faz poucas aparições ao longo do livro, mas é uma personagem interessantíssima.
O rio não parece muito feliz por ganhar uma “coleira”, mas a construção, ainda que com misteriosos acidentes, segue.
Surgirá, então, uma nova personagem: o colecionador de histórias. A misteriosa personagem encontra o narrador, o monge Gjon, e lhe questiona sobre antigas lendas albanesas, joias que seria uma tristeza se se perdessem (cf. p. 78). Entre as lendas que o monge lhe conta está a “Balada do Emparedado”, em que três irmãos construíam uma parede que exigiu um sacrifício humano para manter-se em pé.
Também são narradas as lendas de Durantine e de um ser humano transformado em serpente (curiosamente, temas abordados por Kadaré: o primeiro em um livro de 1980, Kush e solli Durantinën, não traduzido para português e, o segundo, em As frias flores de abril).
Algum tempo depois, rapsodos (personagens recorrentes de Kadaré) passam a cantar a lenda do emparedado, mas mudando um detalhe importante: para acalmar o rio, seria necessário um sacrifício humano: alguém deveria ser emparedado no primeiro pilar da ponte.
O narrador não tem dúvidas: o colecionador de histórias estava a serviço do grupo “Balsas e Jangadas” e subvertera a antiga lenda para impedir que a ponte chegasse ao fim. Os acidentes na construção da ponte, também o narrador tem certeza, são causados por um infiltrado. Neste momento, o romance histórico deixa de narrar fatos do séc. XIV e o vocabulário se torna estranhamente contemporâneo. Quem seria o colecionador de histórias? Não há como responder a tal pergunta sem uma pesquisa mais profunda, contudo.
Um homem acaba sendo emparedado, a ponte é construída, mas todos têm profundo receio de andar sobre um morto. Provavelmente aqui o livro se encerraria, não fosse Kadaré quem é.
Teremos mais 40 ou 50 páginas sobre a crescente (!) ameaça representada pelo Império Otomano e, ao fim, sangue turco é derramado sobre a ponte, causando a guerra, trazendo morte e desgraça (palavras que tanto se repetem no livro).
A leitura, mais do que trazer dados históricos que me eram desconhecidos (como a mutilação de soldados búlgaros por ordem do imperador bizantino Basílio II Bulgaróctono), me causou uma reflexão sobre o papel de um escritor na sociedade, especialmente numa sociedade autoritária como a Albânia em que Kadaré viveu.
Kadaré, em entrevista, afirma que o escritor é o verdadeiro inimigo das ditaduras. Poderíamos ampliar um pouco a ideia: a cultura é a verdadeira inimiga das ditaduras. O maior ataque que se pode fazer à cultura, isto é, a censura, é a primeira medida de qualquer regime autoritário.
O livro termina no mesmo tom sinistro que acompanha toda a leitura: “eu, monge Gjon, filho de Gjorg Oukshama, que relata os referidos fatos advertindo que não há em nossa língua nada escrito sobre a ponte do Ouyane maldito, nem sobre a desgraça que nos ameaça, e o faço por amor à nossa terra” (p. 154).
A PONTE DOS TRÊS ARCOS | Ismail Kadaré
Editora: Objetiva;
Tradução: Adalgisa Campos da Silva;
Tamanho: 154 págs.;
Lançamento: Janeiro, 1999.