Em 1959, dois homens invadiram uma casa numa cidade no interior do Kansas, nos EUA, e mataram todos os seus moradores, o pai, a mãe e os dois filhos. Cinco anos depois, os dois sujeitos foram enforcados pelo crime cometido.
Basicamente foi isso que aconteceu, mas esse amontoado de frases conta apenas com a frieza das informações enfileiradas. Muitas vezes basta ao texto jornalístico informar, porém esta ação nem sempre dá conta da dimensão da experiência humana como um todo, uma vez que não raro uma tragédia é reduzida a números. 4 pessoas foram assassinadas, mas quem são essas pessoas? 2 homens cometeram o crime, ok, mas e aí, quem são esses caras? Por que eles fizeram uma coisa horrível dessas?
O jornalismo está atento a isso e sabe que elaborar uma narrativa atrai público, por isso é bastante fácil perceber hoje em dia a forma meio desconjuntada com que repórteres tentam superar a frieza do mero repasse de informações e tentam produzir emoção, por exemplo, enfiando a câmera na cara de alguém que sobreviveu uma tragédia e acabou de perder tudo: “como você está se sentindo nesse momento?”. Há, nesta insensibilidade brutal, um visível desinteresse pelo ser humano, uma vez que o que importa é apenas a história que pode ser arrancada dali, com luzes e ângulos corretos.
Com o frenesi de prazos e demandas, parece não haver muito espaço para algo que vá um pouco além desta miríade sensacionalista, já que isso obviamente demanda tempo e nem sempre atende aos anseios dos leitores. Por isso um trabalho como o de Truman Capote, que levou mais de um ano só pra entrevistar as pessoas, é tão prestigiado até hoje, como um grande marco para a profissão.
O que há de fascinante em A Sangue Frio, além do cuidado primoroso com a linguagem e com o ritmo, é o profundo mergulho que autor faz nas questões psicológicas envolvendo os criminosos e as vítimas.
O que Capote fez foi contar uma história verdadeira de forma literária, ou seja, ele seguiu os procedimentos de pequisa jornalística, mas adequou as informações levantadas à estrutura e à linguagem da literatura como uma ferramenta para narrar a complexa história de um crime real.
O autor afirma que com A Sangue Frio ele criou um novo gênero literário, o romance de não-ficção, o que não chega a ser verdade, já que outros escritores já tinham utilizado procedimento semelhante antes dele. A diferença é que Capote foi simplesmente genial nessa empreitada e entregou um trabalho impressionante, que não à toa é considerado uma obra-prima.
Mas nem tudo são flores na vida do autor, já que este modelo de narrativa levanta questionamentos quanto à veracidade das informações, uma vez que durante as entrevistas ele não fez gravações e nem mesmo anotações na frente das pessoas, por achar que isso atrapalharia no comportamento delas. Na edição lançada pela Companhia das Letras, com tradução de Sergio Flaksman, há um posfácio escrito por Matinas Suzuki Jr. que trata desta questão e fala sobre como no fim das contas os procedimentos de apuração de Truman Capote eram muito precisos, quase obsessivos, incluindo aí uma capacidade de memorização impressionante.
O que há de fascinante em A Sangue Frio, além do cuidado primoroso com a linguagem e com o ritmo, é o profundo mergulho que autor faz nas questões psicológicas envolvendo os criminosos e as vítimas. O autor traça um perfil bastante denso e preciso de cada membro da família Clutter (o casal Herbert e Bonnie, e os filhos Nancy e Kenyon), seus demônios, medos, anseios, etc., de modo a fazer não só com que tenhamos uma dimensão mais humana da tragédia, mas também para que o leitor crie identificação com aquelas vítimas. Elas deixam de ser um número e passam a ser pessoas que tiveram planos e sonhos interrompidos por uma arma apontada pra cara. O mesmo ocorre com os criminosos (Eugene “Dick” Hickock e Perry Smith), pois eles deixam de ser meros lunáticos como tantos outros, uma representação meio genérica e banalizada do mal, para serem vistos também como ser humanos, gente com história de vida, repletos de falhas, com caminhos tortuosos que os levaram para aquela casa, naquela noite.
Através de uma profusão inacreditável de detalhes, ficamos sabendo, por exemplo, como foi o dia de cada um dos envolvidos, a fuga, o impacto causado na população daquela cidade e todo o processo de investigação que culminou na prisão, julgamento e execução dos criminosos. Tudo isso é bem perturbador, mas talvez nada se compare ao relato minucioso dos assassinos explicando passo a passo tudo o que aconteceu na casa. É um troço de fazer gelar os ossos.
Algo curioso é que por mais que haja um volume absurdo de informações detalhadas, relatos, cartas, confissões etc, ainda assim não existe uma reposta simples e definitiva para a pergunta: por que, afinal, eles cometeram esse crime de forma tão brutal?
Enfim, Capote nos apresenta um pequeno naco da experiência humana sob seus mais diversos ângulos e nos larga ali, atolados em pensamentos sombrios.
A SANGUE FRIO | Truman Capote
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Sergio Flaksman;
Tamanho: 440 págs.;
Lançamento: Setembro, 2003.