À memória cabe a missão tanto de enterrar o passado, quanto de fazer permanecê-lo acessível. “Nosso cérebro foi feito para guardar o passado e trazê-lo à tona quando precisamos, para esclarecer uma situação do presente. Se não fosse esse truque do cérebro, acharíamos que o passado continua presente. Enlouqueceríamos”, diz Marcelo Rubens Paiva em Ainda Estou Aqui (editora Objetiva), um livro de memórias não apenas suas, mas da história de sua família. Em especial, a história de sua mãe, cuja memória se torna a cada momento menos acessível: ela tem Alzheimer.
A obra, bastante tocante, reivindica um lugar na história do país para Eunice Paiva, viúva do engenheiro e deputado Rubens Beyrodt Paiva, cujo mandato foi cassado no golpe militar em 1964. Em 1971, após ser preso com a mulher e a filha mais velha, Paiva desapareceu. O nebuloso episódio – os militares encenaram uma suposta fuga do ex-deputado com auxílio dos “comunistas”, para forjar as situações de sua morte – que foi parcialmente esclarecido apenas em 2014, quando novos documentos encontrados com militares mortos trouxeram pistas em relação ao que de fato aconteceu. O certificado de óbito de Rubens Paiva apenas foi emitido em 1995. O corpo nunca foi encontrado.
Paralela a esta história oficial, registrada e recontada em tantos documentos, vive uma narrativa outra, entendida muitas vezes como menos interessante, e que habita na memória de gente como Eunice Paiva e de seu filho Marcelo, a quem coube a tarefa de trazer preservação a um pedaço de uma memória coletiva que se esvai. Assim, em Ainda Estou Aqui, assistimos ao Brasil sob a perspectiva dos que ficaram, os que apoiaram aqueles que lutavam por um país menos arbitrário, os que nadavam contra uma corrente política ditatorial que se travestia sob o discurso do progresso.
Marcelo Rubens Paiva aqui reivindica a narrativa de uma mulher que, da sua forma, resultante de seus próprios esforços, talvez tenha feito muito mais pela nação do que o famoso pai. Reduzida a um papel de “viúva sem marido morto”, Eunice Paiva reinventou-se de uma dona de casa intelectualizada (formada em Letras, é definida como extremamente pragmática, uma mulher que preferia a companhia dos livros ao tempo passado com as crianças) a uma advogada militante dos direitos humanos e especializada na causa indígena.
Paralela a esta história oficial, vive uma narrativa outra, entendida muitas vezes como menos interessante, e que habita na memória de gente como Eunice Paiva e de seu filho Marcelo, a quem coube a tarefa de trazer preservação a um pedaço de uma memória coletiva que se esvai.
Ainda Estou Aqui mistura então relato histórico, marcado por uma ideia de afastamento e objetividade, e memórias pessoais afetadas pela visão inevitavelmente parcial de quem esteve presente em algum fato. Há, portanto, uma tensão interessante entre a narrativa da história, algo desencarnada, embora precisa, contada, por exemplo, nas escolas – livros e relatos que Marcelo Rubens Paiva critica em entrevistas, sobretudo pelas “comparações esdrúxulas” e deseducadoras muitas vezes feitas por professores – e a narrativa do testemunho, sempre entrecortada pelos filtros das memórias e pelas ideologias nas quais as pessoas escolhem habitar. A obra então consegue encontrar um equilíbrio entre ambas as visões, especialmente por assumir que são complementares e não excludentes.
O livro comove por ser uma tentativa de um acerto de contas de Marcelo Rubens Paiva com sua mãe, cuja relação parece um tanto atribulada (haveria alguma relação pais/filhos que não é?). Agora adulto e também pai, Paiva parece produzir a obra como uma forma de finalmente compreender, perdoar (e perdoar-se) frente à mãe, que tantas vezes desejou que fosse outra. Em Ainda Estou Aqui, pretende fazer jus àquela mulher cujas lições só foram compreendidas tardiamente: a escolha pela luta via resistência, pela subversão à ditadura no tom frente às mídias (não chorar e posar como vítimas quando esperavam que fosse), pela não violência, pela não culpabilização dos indivíduos que perpetuaram as torturas, mas na condenação do sistema e não de suas engrenagens.
O tema da tragédia da perda da memória tem sido recorrente na mídia nos últimos anos (basta lembrar dos filmes Amor?, de 2012, e Para Sempre Alice, de 2015, ambos amplamente discutidos). Ainda Estou Aqui acrescenta nuances à discussão por meio de um relato afetuoso, em linhas delicadas, trazendo permanência e importância à vida de Eunice, mas, sobretudo, à história do Brasil, que ainda está aqui, mesmo que muitos pareçam esquecê-la. Em tempos um tanto sombrios, em que muitos espantosamente se deixam se seduzir pelas promessas de um regime repressor, esta se torna uma leitura obrigatória.
AINDA ESTOU AQUI | Marcelo Rubens Paiva
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 296 págs.;
Lançamento: Agosto, 2015.
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