Você cria uma filha com muito amor e carinho pra certo dia ela chegar no almoço de domingo, por entre maioneses e farofas, e revelar pra toda família de forma bombástica: eu sou blogueira. Deve ser muito difícil para os pais aceitaram uma decepção dessa magnitude, mas há uma luz no fim do túnel que talvez faça as pessoas terem uma visão menos pessimista com relação a blogueiros. Essa luz se chama: Ana Cássia Rebelo.
A advogada moçambicana de 44 anos, que se mudou para Portugal quando tinha 5, mostra com Ana de Amsterdam que existe, sim, literatura de alto nível sendo produzida na internet. O livro é uma coletânea de vários posts de seu blog homônimo (leia aqui), selecionados por João Pedro Jorge e lançado aqui no Brasil pela editora Biblioteca Azul.
O nome do blog foi inspirado na música de Chico Buarque. Ela preenche aquele espaço online com relatos sobre o seu cotidiano, os percalços na criação dos filhos, as relações com amigos ou desconhecidos, certa aversão aos homens, a depressão e até mesmo a frigidez.
Por se tratar de uma seleção de posts que respeita apenas a ordem cronológica, o livro não possui exatamente uma continuidade narrativa, então uma reflexão sobre maternidade pode ser interrompida para, na sequência, lermos sobre os efeitos de psicotrópicos no organismo da autora. Esse aspecto de aleatoriedade faz com que se amplie a noção de complexidade na percepção daquela vida, por mais banal que ela possa parecer, já que a existência não nos é dada por meio de filtros temáticos. E com os cacos deste caos, a autora vai compondo um curioso mosaico do conhecimento sobre si, ao passo que consegue arrancar ali de dentro uma poesia triste e dolorida.
Chama atenção a forma crua como a autora trata assuntos delicados, como por exemplo, quando diz que detesta estar grávida.
Chama atenção a forma crua como a autora trata assuntos delicados, como por exemplo, quando diz que detesta estar grávida, fala sobre dificuldade que sente para amar os próprios filhos (que não deixam de ser o sentido de sua vida) ou ainda quando descreve as secreções de seu corpo, como se ele estivesse apodrecendo. Há muita coragem e desprendimento numa autora que se expõe (e por consequência, nos expõe) assim, tocando em feridas sociais que tendem a ser tratadas como dogmas. Trata-se de uma literatura que perturba, que incomoda e que nos tira da zona de conforto. Portanto, estamos falando do melhor tipo de literatura.
Tal como Mrs Dalloway (leia a crítica aqui), Ana vaga pela vida comum tentando encontrar algum significado maior. Esta busca é sempre marcada por decepções: “Pesa-me a rotina dos dias iguais. É como se os dias da minha vida tivessem sido produzidos em massa. Em fábricas assépticas, reluzentes. Todos com o mesmo peso, a mesma forma, o mesmo rótulo […] Dias iguais. Sempre Iguais. Iguais como os pacotes de leite, de farinha de açúcar, que se enfileiram , aprumados, nas prateleiras dos supermercados. Pesam-me os silêncios, as ausências. Às vezes, tenho a sensação que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza. Uma espécie de tumor que cresce a medida que os dias passam iguais. E se um dia o bicho-tumor tomar conta de mim? E se um dia ele rebentar dentro de mim, espalhando, pelos meus órgãos, tecidos, artérias, pedaços putrefactos dos meus dias?”.
Há também diversas lembranças de sua família e de suas raízes culturais em Goa, na parte que considerei a mais cansativa do livro, e também das ruas portuguesas. Inclusive, um dos atrativos da obra é justamente a linguagem, uma vez que a edição brasileira manteve o texto original, então podemos apreciar a beleza do português de Portugal sendo utilizado por uma autora que se preocupa com a sonoridade e com as imagens construídas através das palavras.
Um dos pontos mais fortes são os contos que vão surgindo ao longo do livro, sempre intitulados com nomes femininos. São pequenos flashs que demonstram, de maneira muitas vezes brutal, as agruras de ser mulher numa sociedade como a nossa. O meu favorito, “Maria Adelaide”, fala sobre uma mulher que levou uma vida muito difícil, por diversas questões muito cruéis, e que acaba de receber um diagnóstico terrível. É de longe uma das coisas mais tristes que li esse ano.
Com Ana de Amsterdam, Ana Cássia Rebelo conseguiu nos apresentar um dos retratos mais contundentes e interessantes da mulher contemporânea (tal como já o fez Chimamanda Ngozi Adichie, por exemplo). Nestes tempos em que, felizmente, tanto se discute a questão da representatividade, curiosamente a autora de um blog surge como um dos nomes mais relevantes. E o mais importante: a qualidade da sua escrita não fica devendo nada para a dos grandes autores contemporâneos.
Vida longa aos blogs literários.
ANA DE AMSTERDAM | Ana Cássia Rebelo
Editora: Biblioteca Azul;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2016.