Muitas vezes, escrever é uma tentativa de organizar o caos. O absurdo da existência parece fazer mais sentido quando em linha reta, por escrito, encadeado por sintaxe e ritmo próprios, porém entre uma oração e outra, ali no espaçamento entrelinhas, as elipses vão se somando para dar forma ao mistério, àquilo que parece indizível. Anunciação, publicado pela Editora Oito e Meio e reeditado pela Arte & Letra, fala sobre esses vãos linguísticos e mentais que resguardam feridas e promessas não cumpridas. A escritora Vanessa C. Rodrigues dá voz a demônios interiores, que costumam ser silenciados por medo ou por convenções sociais.
Um filho no ventre preenche um vazio ou o amplia? Dizer que uma gravidez pode não ser uma dádiva, soa ofensivo? Opinar sobre a vida e o corpo do outro é um ato muito simples e fácil, pois há um fator muito importante envolvido: você não está ali dentro para saber. Neste livro, Vanessa nos põe a par das angústias de uma mulher que sente absolutamente incompleta e que agora carrega dentro de si, mais do que seus medos e anseios, o peso da responsabilidade de criar uma outra vida inteira.
De maneira não linear, vamos recolhendo os cacos de um relacionamento que fracassou. Os dois personagens se conheceram no mundinho acadêmico entre livros e cigarros e xícaras de café e camisetas de bandas. As coisas vão relativamente bem até chegar o momento em que “ela não sabia ao certo quando começou a não ficar contente com nada” e “teve a vez que ela teve certeza que já não gostava tanto dele assim quando aceitou tomar um café com aquele ex-colega de trabalho que já tinha beijado, teve a vez que ela chorou de frente ao espelho porque se sentiu sozinha num final de semana que ele estava em casa”.
De maneira não linear, vamos recolhendo os cacos de um relacionamento que fracassou.
Enquanto o leitor vaga por entre os destroços desse romance, a narrativa dá saltos temporais e então encontramos a personagem ali mais adiante, buscando um novo caminho longe de casa (longe de si?), seja num outro país, seja em lugar nenhum, na paisagem provisória enquadrada pela janela do avião. E neste ir e vir há também os outros personagens, que tal como o amor vão se perdendo pelo caminho, mas que não escapam do olhar atendo da narradora, que ouve e imagina histórias, num exercício de criação e ao mesmo tempo de abandono de si: criar vidas ficcionais para que, de alguma maneira, a vida real se torne mais suportável.
Se por um lado temos a mãe que assume uma filha que não é sua, do outro temos a mãe que não consegue reconhecer o filho que carrega “entre as tripas”. Entre dádiva e desespero, a maldição: “E veio desse parto específico, dessa gravidez espontânea e pura construída milagrosamente nos tempos de antes, da obrigação e obediência, da dúvida e do amor histérico e egoísta, veio de mil e mais mil anos antes o peso da maternidade, o insuportável peso da santidade atribuída às mulheres férteis, Maldição de Maria”.
Assim como em O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza, Anunciação desconstrói o senso comum a respeito da maternidade/paternidade e revira feridas sociais que deixam o leitor desconfortável, pois colocam em palavras, pensamentos dilacerantes sobre a família, que poderiam muito bem passar pela cabeça de qualquer um, mas que pouquíssimos teriam coragem de verbalizar, tendo em vista a possibilidade de linchamento moral. O que os dois autores fazem nestes livros, não é uma tentativa de chocar o leitor, mas sim de escancarar as nossas fragilidades e as nossas contradições diante dos desequilíbrios da vida.
Para quem já conhece o blog da autora (clique aqui) ou o seu livro de poemas, Noturno e Cinza, não chega exatamente a surpreender o fato de que Anunciação seja um dos melhores lançamentos nacionais desse ano. Vanessa C. Rodrigues tem um poder de observação muito grande e ao captar os pequenos movimentos cotidianos consegue transpô-los para as páginas com uma fluidez e uma cadência impressionantes. Há leveza na condução da prosa, mesmo quando o tema é mais soturno, e o lirismo cravado nessa sintaxe muito própria da escritora se encaixa perfeitamente no enredo, sem ficar parecendo um adereço artificial e ainda tornando as elipses prenhes de significados.
O que se vê em cada capítulo de Anunciação é o trabalho de uma narradora madura e experiente. A tal “estreia” diz respeito mais à página impressa e à pouca idade, pois fica claro que o caminho trilhado anteriormente na internet e no meio acadêmico foi uma baita escola para a autora. Quando Vanessa C. Rodrigues começar a ganhar os importantes prêmios literários, quero ser um dos primeiros a erguer a plaquinha escrito “Eu já sabia!”. Enfim, fiquem atentos, se continuar por esse caminho vocês ainda vão ouvir falar muito sobre essa moça.
ANUNCIAÇÃO | Vanessa C. Rodrigues
Editora: Arte & Letra’
Tamanho: 90 págs.;
Lançamento: Agosto, 2021 (atual edição).