Para aqueles que nasceram e cresceram na cidade, de capitais menores como Curitiba a megalópoles globais como São Paulo e Rio de Janeiro, a anatomia do espaço urbano se confunde com a sua própria. De certa forma, ao mesmo tempo que representa a materialização dos anseios, medos e desejos da coletividade, a cidade é a extensão do indivíduo. O urbano é, em essência, humano: com ossos de aço e vidro e artérias construídas em concreto, as cidades se desenvolvem como verdadeiros organismos, entidades dinâmicas, mutáveis e dotadas de características particulares que as diferenciam de todas as demais.
Essa relação simbiótica entre o homem e o organismo urbano forma o cerne do clássico de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, que ganhou belíssima edição ilustrada pela Companhia das Letras no início deste ano – a oportunidade perfeita para se entregar ao magnetismo das metrópoles mágicas contidas na obra. A narrativa consiste em breves descrições de cidades fictícias, fundamentadas nos moldes do realismo mágico; em outras palavras, injetando doses de surrealismo e delírios fantásticos nas leis da realidade. As descrições são narradas por ninguém menos que Marco Polo, o maior de todos os viajantes, que tece seus relatos ao grande conquistador Kublai Khan, com o objetivo de fornecer ao imperador vislumbres das inúmeras cidades que compõem seu território.
Essa relação simbiótica entre o homem e o organismo urbano forma o cerne do clássico de Italo Calvino As Cidades Invisíveis, que ganhou belíssima edição ilustrada pela Companhia das Letras no início deste ano.
Brevíssimas, as descrições funcionam como uma sucessão de microcontos, pequenos capítulos que não dependem diretamente dos demais. Ainda, os 55 relatos estão organizados em 11 temas principais, distribuídos não cronologicamente, trazendo títulos como “As cidades e a memória”, “As cidades e o desejo” e “As cidades e os olhos”. A leitura de grande parte da narrativa, portanto, pode ser feita de forma não retilínea, permitindo que o leitor explore as dezenas de metrópoles em seu próprio ritmo, traçando os caminhos que quiser – e assim encarnando a essência errante do próprio Marco Polo.
Os intricados mecanismos da obra, meticulosamente arquitetados para garantir ritmo à narrativa, só operam harmoniosamente em conjunto graças ao lirismo destilado de Calvino, um escritor capaz de costurar poesia em frases breves, lapidadas e fundamentalmente fortes. O poder descritivo do autor, ao mesmo tempo sintético e poético, é comprovado pelos ecos que perduram na lembrança do leitor após cada viagem às cidades invisíveis. Os mil poços de Isaura, os tesouros abstratos do palácio de Fedora, o abismo que ameaça devorar Otávia, cidade-teia-de-aranha: essas e outras imagens fantásticas conjuradas pelo narrador, marcadas por originalidade e inesgotável variedade, não saem da memória tão facilmente.
“Se meu livro As cidades invisíveis continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas”, explica o próprio autor. Após concluir a leitura dessa bela edição, contendo oito ilustrações inéditas de Matteo Pericoli, é difícil discordar que Calvino cumpriu sua missão: sintetizar, nas muralhas e vielas de suas cidades impossíveis, a imensidão incompreensível de toda experiência humana.
AS CIDADES INVISÍVEIS | Italo Calvino
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Diogo Mainardi;
Tamanho: 152 págs.;
Lançamento: Dezembro, 1990.