Cidinha da Silva abre o seu Baú de miudezas, sol e chuva (Mazza, 2014) com uma comparação feita por um leitor, de sua escrita com o jazz. As crônicas da escritora mineira (extraídas de publicações nas redes sociais?) são feitas de sacadas e improvisos, embaladas pela melodia do afeto e pela reverência à ancestralidade negra.
“como o jazz”
“no dia em que o conheci, o menino comprou todos os meus livros. no outro, levou a namorada linda para me apresentar. em outros, um amigo, a quem chamava de irmãozão.
conversa vai, conversa vem, concluí que gostava de meu trabalho, embora nunca tenha emitido uma opinião objetiva.
ontem, distraidamente, num papo sobre temas diversos e diletantes, ele me disse a coisa mais bela que meu coração poderia escutar: ‘seu texto é negro como o jazz.’
aquilo me deu outra vida, e eu a vivi como um cello de yo yo ma ecoando nas paredes do mundo.”
Há algumas em que a autora lamenta o amor perdido; outras em que destaca a representatividade negra em produções da comunicação de massa; outras em que cita seus artistas prediletos, como Itamar Assunção, Dorival Caymmi e Lázaro Ramos; e há textos em que cita as divindades de sua devoção. A religiosidade permeia a maior parte dos textos, evocando um universo maravilhoso no cotidiano: Exu, Ogum, Iansã são protetores e convocados a comemorações.
A crônica mais forte é aquela em que ela relata sua mudança de Belo Horizonte para São Paulo. Ao conhecer a diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Sueli Carneiro, e mudar para a metrópole paulistana, Cidinha determina um caminho em que a literatura e o pensamento afirmativo sobre a negritude estará sempre presente. Ao perceber, ainda jovem, o jogo em que se articula o poder da intelectualidade, e desviar dele, a autora apresenta uma força em que viria a transformar a atual escritora.
“Vinte dias depois do telefonema que adiantou a primavera, apresentei-me àquela que passaria a comandar meu exército interior. Ainda demorou mais de dois anos para eu conseguir trabalhar diretamente com ela e nesse período fui testada, inúmeras vezes.
Em todos os textos, Cidinha apresenta uma escrita amadurecida, como a sua personalidade.
No primeiro teste, outra diretora, talvez enciumada com a forma como eu idolatrava Sueli Carneiro, e também para demonstrar poder, me ofereceu, na frente dela, uma viagem aos EUA. Eu deveria representá-la numa conferência e ler um trabalho seu. Eu, com 24 anos, saía da roça para a cidade grande há pouco tempo e a tentação era grande. Sueli, calada, apenas, observava.
Serena, agradeci a lembrança e o oferecimento, mas não podia aceitar porque não falava uma gota de inglês. A diretora insistiu, contrariada, irritada. Argumentou que não se fazia necessário dominar a língua, ela treinaria a leitura do texto comigo. Não, obrigada, eu não falo inglês, reiterei, orientada pelos velhos que sustentam meu Ori e pela certeza da lição aprendida em casa, de que, na vida, a gente deve ter valor, não preço.” (Páginas 98 e 99).
Em todos os textos, Cidinha apresenta uma escrita amadurecida, como a sua personalidade. Crônicas são, de fato, temas miúdos do cotidiano. Graças ao olhar apurado da autora, tornam-se grandezas.
Maria Aparecida da Silva – Cidinha da Silva – nasceu em Belo Horizonte, em 1967, e é historiadora. Estreou na Literatura Afro-brasileira com a coletânea em prosa Cada Tridente em seu lugar, publicado em 2006. Depois passou pela literatura infantil com os livros Os Nove Pentes D’África (Mazza Edições, 2009), Kuami (Nandyala, 2011), O Mar de Manu (Kuanza Produções, 2011), se permitindo fabular e resgatar da africanidade brasileira os valores de amizade, amor e esperança. É autora das peças teatrais Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas. Seu último livro de crônicas é O homem azul do deserto, de 2018.
BAÚ DE MIUDEZAS, SOL E CHUVA | Cidinha da Silva
Editora: Mazza Edições;
Tamanho: 104 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2014.