O faroeste é, talvez, a única narrativa genuinamente norte-americana. Tanto no cinema quanto na literatura, é um espelho da conquista e da colonização, um retrato épico dos valores que permeavam a ideia de moral e, em certa medida, ainda se espalham por meio de conceitos conversadores e estereotipados. Certa vez, o jornalista André Nigri, ao falar de Onde os fracos não têm vez, colocou nas costas de John Ford a culpa pela criação dessa espécie de mitologia típica dos Estados Unidos, mas no mesmo texto decretou a morte do faroeste como o conhecemos.
Anos antes de Cormac McCarthy publicar o livro que serviria de base para que os irmãos Coen produzissem a sua obra-prima, o escritor Kent Haruf punha na mesa – com Canto da planície, primeira parte da Trilogia da Planície – as verdadeiras estruturas que encerrariam a tradição do gênero. Esse novo ciclo, que casou também com a virada do século, é uma importante ruptura e ressignificação do espaço e do sujeito.
Em Holt, a cidade ficcional onde orbitam as criaturas de Haruf, não existe espaço para um John Wayne ou Clint Eastwood modernos e, nas poucas tentativas que os homens da cidade fazem de igualarem-se a eles, fica clara a estranheza e o desajuste. Os dramas de Canto da planície são mais pessoais, quase que vividos à escondida. Tom Guthrie, sem dúvida um dos personagens mais complexos do livro, vive entre a escola onde é professor, a vida doméstica com os filhos Ike e Bobby, a esposa Ella em crise depressiva e um caso amoroso com Maggie Jones.
Kent Haruf entremeia as histórias com uma fluidez ímpar, levando o leitor pela mão.
Nesse universo pendular vão se encaixando novas peças à medida em que a narrativa avança: uma adolescente expulsa de casa porque está grávida, os irmãos solteirões que a acolhem, o arruaceiro da cidade, e tantos outros personagens que ajudam a compor um retrato tanto vasto quanto singular.
Sinestesia
Traçar uma linha que percorra o livro é uma tarefa hercúlea. Kent Haruf entremeia as histórias com uma fluidez ímpar, levando o leitor pela mão. O tratamento que o autor dá ao texto vai ao extremo, visitando o psicológico do realismo clássico ao absurdo do contemporâneo. Por isso, Canto da planície é um livro extremamente sinestésico. E são as imagens, os cheiros e as impressões táteis que dão ainda mais corpo à narrativa, criando uma relação de intimidade e cumplicidade.
Ken Haruf é um narrador poderoso, com uma habilidade de manipular tempo e espaço em uma condução orgânica. E é por isso que, passados duas décadas de sua publicação, Canto da planície é um livro relevante e atual, capaz de escrutinar o verniz que cobre a falsa moralidade de uma sociedade vil e entrincheirada em suas próprias angústias.
Como Holt está para além do conceito de bom, mau e feio, a solidão e o vazio são os únicos elos que conectam os diferentes eixos da cidade. É o desespero, por exemplo, que faz Victoria, a adolescente grávida, abandonar os irmãos McPheron e fugir para encontrar o pai do seu filho. Haruf explora os embates psicológicos e os transforma em força-motriz de muitos dos episódios que compõem o livro.
Canto da planície é um livro sobre o afeto e a ausência, mas que – sem consciência prévia e sem imaginar o buffet livre de gadgets pós-anos 2000 – refletiu o mundo de isolamento e a falta de entusiasmo que temos diante do outro.
CANTO DA PLANÍCIE | Kent Haruf
Editora: Rádio Londres;
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Julho, 2019.