Nascido em San Diego em 1960, RuPaul Charles (esse é seu nome real) se tornou, ao longo da última década, uma celebridade com um alcance atingido por poucas. Mais do que virar uma pessoa famosa, Ru criou um universo inclusivo – centralizado no programa RuPaul’s Drag Race – composto por uma estética, uma linguagem e uma ética próprias.
Mas como essa persona (poderíamos também falar dessa “marca”) foi forjada? De alguma forma, isso é respondido em A Casa dos Significados Ocultos (editora Intrínseca, 2024, tradução de Helen Pandolfi), livro de memórias de RuPaul Charles em que ele relembra sua infância, sua vida sentimental e sua batalha para entrar no fechado mundo artístico. Não há exatamente a pretensão de uma biografia, mas sim a intenção de trazer um relato pessoal, com algum toque de auto-ajuda (que não chega a prejudicar a obra), em que o artista narra como a dureza de sua trajetória conspirou para que ele fosse moldado como uma das principais celebridades do mundo hoje.
O resultado surpreende por conta da franqueza e da lucidez com que Ru fala de seu passado familiar e dos perrengues enfrentados por décadas. Nascido em uma família pobre com um casal disfuncional (a mãe, de ascendência francesa, era extremamente rígida e destoava da personalidade do pai, um conquistador nato), o apresentador conta que passou por anos tentando conquistar, em vão, a atenção paterna, sem sucesso.
Enquanto isso, tentava suprimir as carências da mãe tornando-se um performer engraçado em casa – o que, de certa forma, já o aproximou do mundo artístico, na mesma medida em que o indispunha a lidar com suas próprias frustrações. Foi a mãe, aliás, que deu ao filho um nome inusitado que, segundo ela, “nenhum outro filho da puta tem igual”.
Outra questão bastante presente na obra é a negritude e os seus significados em uma cidade conservadora nos anos 1960 e 1970. Em muitos momentos, Ru tece considerações sobre a consciência política circulante e sobre como ele tinha noção de que ser negro era muito mais difícil em alguns locais. Atlanta, nesse tempo histórico, aparece como uma espécie de oásis onde as pessoas negras queriam estar.
Mas além dos dramas sociais, familiares e pessoais (como o desinteresse pela escola e a falta de rumo na vida), RuPaul lidava com suas próprias questões identitárias. Altíssimo (mede mais de 1,90 metro) e com traços femininos, o jovem habitava um limbo sobre quem era e sobre o que representava dentro da sua comunidade LGBTQIA+.
Um homem (e uma mulher) de mil faces
É nesse aspecto que A Casa dos Significados Ocultos vai se tornando cada vez mais interessante. RuPaul reflete sobre a sua sensação de inferioridade pelo “lugar” confuso que ocupava em uma espécie de hierarquia identitária: era afeminado e não se sentia alvo do desejo de ninguém.
RuPaul reflete sobre a sua sensação de inferioridade pelo “lugar” confuso que ocupava em uma espécie de hierarquia identitária: era afeminado e não se sentia alvo do desejo de ninguém.
A aproximação gradativa com o meio artístico e a descoberta de sua linguagem, inspirada pelos movimentos punk e new wave, fez com que aos poucos Ru desenhasse uma persona para si. Ao vestir-se de mulher de forma mais séria, RuPaul sente, pela primeira vez, uma mudança de chave: passava a se sentir visto de forma diferente pelos homens.
“Minha silhueta sinalizava que eu era uma mulher. Em minha mente, eu estava sendo rebelde e punk: eu era um homem negro de 1,93 metro, com peitoral e pernas cobertos de pelos, usando um vestido formal. Mesmo nos bastidores, senti uma mudança de energia. O modo como os homens me olhavam era feroz, quase agressiva. Foi a primeira vez que me lembro de sentir isso vindo de homens”.
A partir de então, mesmo com muitos altos e baixos – destaca-se no livro a luta para conseguir um espaço no fechado mundo artístico, as constantes decepções amorosas e a quantidade de drogas que ingeria para escapar de sua realidade – Ru vai construindo, tijolo por tijolo, um lugar único para si. A ascensão das super modelos, nos anos 1990, faz com que o artista dê a sorte de que seu single “Supermodel” estoure.
O resto é história. Bem escrito, A Casa dos Significados Ocultos nos presenteia também com relatos interessantes sobre a cena punk e drag nos Estados Unidos, e do levante artístico underground nas casas noturnas e até na televisão. Aparecem também pequenas fofocas deliciosas, como quando Ru, nos anos 1980, invadiu um camarim onde estava Madonna, já uma estrela em ascensão.
Sua descrição do encontro é peculiar: ele conta que foi fuzilado com o olhar pela cantora. “Madonna me lembrou minha mãe. Ambas leoninas, frias ao extremo”. Mas esse detalhe, no livro de memórias, é um dos únicos em que RuPaul critica nominalmente algum membro do mundo artístico. Há alguns ataques mais vagos, como quando fala que os políticos conservadores são contra o aborto, mas o defendem para as suas mulheres.
De todo modo, A Casa dos Significados Ocultos é um mergulho na estética de um dos grandes artistas do século, cujo talento envolve ter conseguido, de forma pioneira, capturar o espírito do seu tempo e levá-lo de maneira muito coesa a milhares de pessoas no mundo todo. É é por isso, no fim das contas, que RuPaul’s Drag Race importa tanto.
Escreve RuPaul: “a vida é cheia de dualidades: noite e dia, preto e branco, ying e yang, bem e mal, nascimento e morte, amor e medo. Não se pode ter um sem o outro. É preciso dois para criar a atração magnética que alimenta a vida. Essa é a ordem natural das coisas: que tudo, em contraste, esteja em perfeito equilíbrio. Sempre me senti tanto homem quanto mulher”.
A CASA DOS SIGNIFICADOS OCULTOS | RuPaul Charles
Editora: Intrínseca;
Tradução: Helen Pandolfi;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Março, 2024.
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