Findou-se, na semana passada, mais uma edição do RuPaul’s Drag Race – a décima temporada, celebrando dez anos de sucesso improvável do programa, que hoje configura como uma verdadeira franquia midiática que estende seus braços para o mundo inteiro. Conforme já discuti em outros textos sobre o reality show, RPDR é, de fato, um verdadeiro fenômeno cultural, que concretiza uma imensurável contribuição à sociedade ao difundir uma mensagem de tolerância para todos os lugares.
Talvez seja possível dizer, sem exagerar, que a grandiosidade do programa capitaneado por RuPaul Charles se dá no fato de ter popularizado não apenas a arte drag, mas por ter compartilhado a cultura LGBTQI+ como uma forma legítima – e desejada – de ser e estar no mundo, fazendo com que milhares de pessoas se sentissem acolhidas neste imenso fandom do programa.
Vejamos alguns elementos importantes que consolidam RPDR na cultura: o programa foi capaz de consolidar uma linguagem própria, que conecta os fãs (RuPaul repete continuamente uma alta quantidade de bordões, como “sashay away” e “if you don’t love yourself, how the hell you’re gonna love somebody else?”); as drags, individualmente, geram um universo próprio de culto e angariam admiradores fiéis; o programa requisita aos seus espectadores que se envolvam nas decisões acerca das participantes a partir de sua própria escala de valores; os episódios conseguem conciliar a leveza do humor com a emoção mais genuína provinda dos dramas pessoais.
Há mais do que simplesmente amor e acolhimento neste universo centralizado em RuPaul. E talvez seja justamente isso que continuará a tornar este programa tão interessante.
A temporada 10 foi competente, embora pouco surpreendente – conforme já comentei na temporada 9, atualmente o programa enfrenta o desafio de conseguir se renovar e permanecer o mesmo, para evitar o risco de cair na mesmice. É como se, depois de tantos anos, os reality shows tornassem previsíveis em suas fórmulas e nas possibilidades de variações que eles conseguem abraçar.
Na última temporada, não tivemos grandes favoritas, nem muitas subtramas que impactassem a audiência – talvez a principal questão levantada dizia respeito à personalidade da candidata Kameron Michaels, que era descrita como extremamente calada (ou seja, um verdadeiro pesadelo para o formato, que depende justamente da interação permanente entre os participantes) e, por isso mesmo, tomada como uma concorrente menor pelas colegas. No entanto, aos poucos, Kameron (uma drag atípica, pois era uma espécie de fisiculturista, bem musculosa, e cheia de tatuagens) foi destacando nos desafios, e tornou-se uma “zebra” da competição. Toda sua trajetória levantou uma discussão interessante: Kameron escondia o jogo (e, por consequência, era estratégica, ou mesmo desonesta) ou era apenas tímida?
Mesmo sendo uma temporada “morna”, digamos, a temporada 10 de RuPaul’s Drag Race teve pelo menos um episódio riquíssimo. Falo do famoso episódio do “Reunited”, que é esperado por muitos fãs, e detestado por outros. Em suma, é um episódio “lavagem de roupa suja”, em que as participantes se reúnem para tirar satisfações sobre as situações enfrentadas ao longo das gravações. Ele é crucial ao formato reality show, pois promete justamente a exibição das mágoas, ou seja, daquilo que acreditamos ser mais autêntico nas pessoas envolvidas no programa – se elas estão sempre controlando como aparecerão frente às câmeras, é no episódio “Reunited” que acreditamos que iremos ver o que elas realmente sentem.
Nesse sentido, o “Reunited” cumpriu ao ofertar exatamente o que prometia: confronto, tensão emocional, lágrimas e terapia coletiva. Tudo se deu por meio de um conflito interessantíssimo, no qual Ru teve um papel crucial enquanto uma espécie de psicólogo do grupo. Em resumo: uma das participantes, a drag The Vixen, que protagonizou uma grande quantidade de atritos durante a temporada, foi confrontada por suas colegas em relação à sua postura. De personalidade difícil, The Vixen sugeria, durante todo o programa, ter passado por muitos problemas ao longo de sua vida, o que teria moldado sua personalidade como uma pessoa reativa.
Após uma série de constrangimentos e confrontos com outras drags, The Vixen, sentindo-se encurralada, levantou-se e foi embora do programa – abrindo espaço para um tenso debate entre RuPaul e outras participantes, especialmente Asia O’Hara. A discussão se dava em torno sobre qual postura deveria ser mantida frente a uma colega que resolve se segregar de um grupo. Asia, de mentalidade mais conciliadora, joga a questão: nós deveríamos, na verdade, resgatar a nossa irmã, pois há ali uma pessoa em sofrimento que pede ajuda, mesmo que não saiba. Incisivo, em um tom acima do que costuma usar durante o programa, RuPaul é categórico: não há como ajudar quem não pede ajuda.
É uma questão absolutamente complexa acerca das dinâmicas dos relacionamentos humanos – trazidos, aqui, à análise do grande público televisivo. No entanto, vários comentaristas do programa observaram ali um episódio que envolvia racismo e outras formas veladas de segregação, e que essa seria uma discussão que o programa tem se abstido de fazer. A postura de RuPaul – que vai pela linha do “levante a cabeça e enfrente seus problemas, ao invés de achar desculpas e se vitimizar” – tem sido encarada por certas críticas como uma espécie de passividade e conformismo para evitar lidar com questões de fundo racial (de que as drags negras estariam em desvantagem no programa em relação às brancas) que acabam por ficar veladas no reality.
Um episódio denso, emocionalmente pesado, e que, aparentemente, serviu ao propósito de consolidar a relevância deste grande programa. Vale a pena cuidar se, na temporada 11, a questão racial será abordada. Fica por fim uma pulga atrás da orelha: há mais do que simplesmente amor e acolhimento neste universo centralizado em RuPaul. E talvez seja justamente isso que continuará a tornar este programa tão interessante.