Há poucos cenários que parecem mas fascinantes que uma redação de jornal do passado. A ideia de repórteres fumando em salas abarrotadas de papel e máquinas de escrever, de jornalistas que sobem os morros para ver a “vida como ela é”, de profissionais que priorizam o trabalho e a boemia e negligenciam a família – tudo isso já foi abordado em obras de ficção diversas.
Não por acaso, Joel, o personagem protagonista de Chuva de Papel (Companhia das Letras, 2023),de Martha Batalha, aparece, logo no começo do livro, pensando em qual seria a melhor forma de se matar. Afinal, o repórter velha guarda, que consolidou seu caminho como “jornalista raiz” cobrindo crimes e, por vezes, distorcendo fatos no jornal Luta Operária, se reconhece num mundo em que não há mais espaço para ele.
A carreira que ele (um sujeito pobre, filho de um pai abusador, e com vários casamentos fracassados no currículo) consolidou não vale muito num mundo contemporâneo. O romantismo do jornalismo de sua época – sensacionalista, ok, mas muito mais próximo da realidade das classes pobres no Rio das décadas de 60 e 70 – simplesmente cedeu espaço para conteúdos que deem resultados.
Mas se engana quem pensa que este é um livro essencialmente melancólico. Ao contrário. A autora, Martha Batalha (também responsável pelo sucesso A vida invisível de Eurídice Gusmão, que foi adaptado para o cinema), faz uso de uma linguagem bastante engraçada e sobretudo debochada. Basta observar a frase de impacto que abre Chuva de Papel: “quando Joel caminha por Copacabana, tem o hábito de olhar para cima avaliando de onde poderia se jogar”.
Para a alegria dos leitores, os planos do suicídio do velho repórter são totalmente atrapalhados, e ele não morre. Ao sobreviver, Joel acaba sendo jogado de casa em casa até ir parar num quarto do apartamento mínguo de uma mulher, chamada Glória. Ao lado de Glória e de sua amiga e vizinha, Aracy, Joel irá se ver diante de relações que irão transformar a sua vida.
Rio de Janeiro em contexto pandêmico
Tendo o jornalismo como pano de fundo, o centro de Chuva de Papel é, sem dúvida, a angustiante vida interior dos personagens centrais – Joel, Glória e Aracy. O romance se passa num contexto atual, em que a sociedade enfrenta os resultados da pandemia de Covid-19. Mas, mesmo antes disso, Joel se depara em frente a um mundo em transformação: há pessoas que batem panela nas janelas, pedindo uma transformação política a qualquer custo. Há os que apoiam presidentes que negligenciam a população.
Chuva de Papel seduz pela linguagem precisa e bem-humorada usada por Martha Batalha e pelo carisma dos personagens.
Ao se verem presos juntos – tanto pelos riscos à saúde quanto pela escassez de recursos – os três precisam lidar com uma convivência forçada e até antipática. Joel, que vive de favor na casa de Glória, aos poucos descobre que aquela mulher de língua ácida (são dela as melhores tiradas do livro) tem um passado mais rico do que ele imaginava.
Chuva de Papel seduz pela linguagem precisa e bem-humorada usada por Martha Batalha e pelo carisma dos personagens – que são tão bem construídos que é até possível visualizá-los em uma adaptação cinematográfica ou televisiva. Mas seria um injusto falar da obra sem destacar outros dois pontos.
O primeiro é a importância do Rio de Janeiro na história contada aqui. O “carioquês” da trama não é acidental. De alguma forma, o romance carrega em si a alma da cidade, retratando o crescimento vertiginoso da metrópole tendo como base o atropelamento de muitas pessoas pelo caminho.
O Rio, de certa maneira, é também personagem. Em entrevista ao jornal O Globo, Martha Batalha declarou: “tudo aqui no Rio é muito”. E é esta perspectiva sufocante – de um sujeito de que, em um estágio da vida, está no topo do mundo, e no outro só tem um abajur para chamar de seu – que atinge o leitor a todo instante.
O segundo elemento que gostaria de ressaltar é o próprio retrato do jornalismo que é feito pela obra. Ainda que não haja exatamente saudosismo quanto ao passado (no sentido de que fica claro que o jornalismo feito no Luta Operária era mais leviano que qualquer outra coisa), há em Chuva de Papel uma potente homenagem aos repórteres que, por séculos, se aventuram na árdua tarefa de traduzir em palavras um mundo complexo.
Isso se traduz com perfeição em um trecho do livro, em que Joel fala: “é assim que se conta uma história: escolhendo as peças que se complementam, não com a rigidez de um quebra-cabeça mas com as possibilidades das peças de Lego. A gente liga uma a outra peça, e faz algo maior, original”.
Joel, por ser um jornalista da velha guarda, é ainda o repórter do boteco, que mora na favela para fazer uma reportagem e que mantém informantes entre moradores de situação de rua, no delicado equilíbrio entre “usar” essas fontes e se comover com suas histórias. Por mais que fosse sensacionalista, pode-se certamente falar de um ofício mais humano e mais envolvido com a realidade das pessoas.
Entre a homenagem e o humor, Chuva de Papel se consolida como um dos grandes lançamentos do ano e certamente como uma das leituras mais deliciosas que você irá fazer.
CHUVA DE PAPEL | Martha Batalha
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 247 págs.;
Lançamento: Março, 2023.
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