Há hoje uma longa caminhada nas discussões que são feitas sobre as questões da maternidade. A defesa pública da chamada “maternidade real” amplia o espectro do que pode ser dito sobre o tema. Contudo, há ângulos que ainda fogem desse debate. Um deles é a questão das chamadas “barrigas de aluguel”, as mulheres que “alugam” seu corpo para gerar filhos dos outros.
Este tema delicado é o mote do segundo livro da escritora Fabiane Guimarães, Como Se Fosse Um Monstro (Alfaguara, 2023). Ainda que a prática seja ilegal no Brasil (diferente de outros países, como nos Estados Unidos), há registros de escândalos que envolveram a comercialização desses “úteros” de mulheres, quase sempre pobres, que viram essa atividade como uma forma de sair da pobreza.
Como Se Fosse Um Monstro apresenta-se como uma obra corajosa por uma razão central: a forma dessacralizada pela qual encara a maternagem, passando muito longe de qualquer forma de idealização.
Em Como Se Fosse Um Monstro, a história gira em torno de Damiana, uma mulher já velha, nascida em Goiás, que é procurada por uma jornalista chamada Gabriela. A repórter chega a uma fazenda incrustada no centro do Brasil com o intuito de entrevistá-la. No seu passado, há algo no mínimo estranho: por 6 vezes, ela gerou filhos para outras pessoas.
Descobrimos então que a trajetória de Damiana é parecida com as de tantas mulheres: crescida na pobreza, numa casa de pai ausente e mãe que se virava para sustentar as várias filhas, ela recebe o convite de uma prima para ir trabalhar para um casal, em Brasília.
A princípio, ela presta serviços de empregada doméstica. Mas aos poucos há uma sedução um pouco estranha: o casal sugere se ela, jovem e humilde, não toparia emprestar seu corpo para gerar o desejado rebento do pai, que faz questão de perpetuar seus genes.
A experiência abre uma nova possibilidade para Damiana: a de usar seu corpo, sem grande apego, para criar o dinheiro o necessário para tirar sua família da pobreza e, inclusive, pagar uma cirurgia urgente para a sua mãe.
A maternidade sob vários ângulos
Como Se Fosse Um Monstro apresenta-se como uma obra corajosa por uma razão central: a forma dessacralizada pela qual encara a maternagem, passando muito longe de qualquer forma de idealização. O ato de gerar um filho é tratado por Fabiane Guimarães de maneira franca e que se afasta de julgamentos.
A personagem de Damiana, com sua “característica” inusitada – a de não se apegar às gestações – muito menos é posta como uma régua moral. Pelo contrário, já que há personagens que se contrapõem a ela, como mulheres que enfrentam depressões pós-parto imprevistas e um homem que parece desejar mais um filho que a esposa. Há ainda uma discussão presente sobre a questão do aborto e a possibilidade de uma mulher não desejar ser mãe.
O livro se oxigena por meio da escrita direta e fluida, com forte tom jornalístico, certamente um trunfo tirado da trajetória da autora na profissão. Não há “sobras”, ou forçações de barra para prender o leitor no que seria uma história chocante. Com isto, o que tento dizer é que a trama impacta por aquilo que é, sem arroubos.
Este desejo por uma narrativa límpida e desapegada encontra ressonância no inspirado título da obra, que repete uma fala de Damiana à sua entrevistadora: a de que não seja vista como um monstro, ou seja, como um ser cuja existência contraria a própria natureza. É justamente o contrário, e a personagem nos convida a pensar como tudo é possível nas condições exatas de temperatura e pressão.
Talvez haja apenas uma parte mais frágil no romance, que é uma estratégia que considero um pouco gasta de usar o recurso do jornalista que entra em cena com intenções escusas – um plot usado algumas vezes pelos escritores e, mais recentemente, trazido em Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, de Taylor Jenkins Reid.
Contudo, isto não apaga o ineditismo da obra de Fabiane Guimarães, que consegue algo raro: trazer à mente do leitor uma reflexão que provavelmente o tira de seu lugar de conforto.
COMO SE FOSSE UM MONSTRO | Fabiane Guimarães
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Março, 2023.
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