Tudo bem que Barack Obama não é um crítico literário, mas quando o líder da nação mais poderosa do mundo elogia muito um livro não tem como não ficar pelo menos um pouquinho curioso pra saber do que se trata. Pois bem, Destinos e Fúrias, a obra que o presidente dos EUA classificou como sendo o melhor livro que ele leu em 2015, chegou ao Brasil recentemente, publicado pela editora Intrínseca com tradução de Adalgisa Campos da Silva.
O romanção escrito por Lauren Groff foi finalista do National Book Award. Isso talvez já seria suficiente para fazer o livro vender mais, mas a edição brasileira ainda conta com aquele recurso meio constrangedor de inserir uma página só com frases elogiosas de jornais e revistas (já vimos por aqui que esse negócio de publicar elogios demais pode dar merda: clique).
E aí, no fim das contas, o livro é tudo isso mesmo? É claro que não. Mas vamos por partes.
A história é bem ambiciosa: ela conta as diferentes versões de um mesmo casamento, primeiramente pela perspectiva do marido, Lotto e depois pelos olhos da esposa, Mathilde. A narrativa os acompanha desde a infância, passa pelo primeiro encontro, o casamento aos vinte e poucos anos, a vida profissional e segue durante as décadas seguintes. A ideia é mostrar que existem verdadeiras lacunas nas vidas de um e de outro, que fazem com que exista um verdadeiro submundo íntimo e solitário que em geral os parceiros desconhecem, apesar de dividirem a mesma cama todos as noites.
Talvez você esteja pensando: já vi essa história, um deles imaginava que vivia num casamento feliz, mas na verdade o outro era infiel pra caralho e aprontava altas confusões. Nada disso. Ponto pra Groff.
A autora implode algumas de nossas expectativas e também se mostra muito hábil em costurar uma longa trama não-linear que mistura não apenas o presente e o passado, mas também os focos narrativos.
A autora implode algumas de nossas expectativas e também se mostra muito hábil em costurar uma longa trama não-linear que mistura não apenas o presente e o passado, mas também os focos narrativos (num sinal de que a autora leu Virgínia Woolf com bastante atenção). Neste sentido, ela insere a complexidade necessária para o tipo de discussão que propõe, uma vez que a história é toda composta por ambiguidades e dilemas morais.
Lotto não é exatamente um jovem bonito, mas sua estranheza (e a riqueza de sua família) atrai uma quantidade considerável de mulheres. O pica da galáxias (nos termos da própria autora) só sossega o facho quando conhece a misteriosa Mathilde numa festa. É aquele negócio de paixão à primeira vista, duas semanas depois os dois estão casados e levando uma vida de merda, mas com muito amor. É que a família de Lotto não vê com bom os olhos este relacionamento e resolve cortar toda a grana, então o jovem casal terá que se virar por conta própria.
Com ajuda de Mathilde e sob a constante desconfiança dos amigos, Lotto larga a vida de ator medíocre para se arriscar como dramaturgo e é ali que encontra o seu verdadeiro talento. Lauren Groff consegue desenvolver um personagem que é extremamente narcisista, mas que mesmo assim não é um completo filho da puta, já que tem muito de ingenuidade e cegueira. Há uma discrepância que incomoda: ele cativa todas as pessoas ao redor, mas não o leitor. Aos pouco, vamos percebendo que ele deve o seu sucesso não apenas ao seu esforço, mas também à presença quase invisível de Mathilde.
A prosa da autora é um pouco enrolada e provavelmente decepcionará aqueles leitores que comprarem o livro em busca de uma historinha de amor que flui com facilidade. A narrativa em si é um tanto maçante e umas 150 páginas a menos não fariam mal, mas a irregularidade está mesmo na linguagem. A autora abre mão de qualquer simplicidade e tenta inserir lirismo por todos os cantos. Ela inverte a ordem das frases, jogando o sujeito lá pro final, sublima a clareza das imagens que está descrevendo, apostando na construção da atmosfera e tentando ser poética em diversas situações que talvez fosse melhor optar pela objetividade. Nesse meio tempo, ela consegue compor algumas frases realmente bonitas como “Um tigre de luz, através das janelas acima da porta, vagueou pelo chão limpo de madeira”, mas também solta algumas coisas bem constrangedoras como: “A beleza aponta com exatidão a dor e acerta no alvo do coração”.
Investigar a falência do casamento não é exatamente uma novidade, mas a escritora norte-americana acha o seu próprio caminho contrapondo pontos de vista e misturando narração convencional com peças de teatro. A propósito, as referências a Shakespeare abundam ao longo de todo o livro.
Embora a autora busque sutilezas linguísticas, o mesmo não podemos dizer a respeito das revelações do enredo. Lotto tem uma visão muito estúpida e inverossímil a respeito de sua mulher (que provavelmente tentariam justificar dizendo que isso ocorre porque ele só pensa em si mesmo), ao longo de toda a primeira parte do livro a narração reforça tantas vezes que Mathilde é “uma santa”, que só falta aparecer um outdoor anunciando que uma reviravolta se aproxima.
Destinos e Fúrias é um livro cansativo, com vários momentos muito bons, mas com outros bem sonolentos. O grande trunfo de Lauren Groff é que ela consegue fugir de diversos estereótipos e ainda se arriscar bastante na forma. Porém, a despeito dos elogios presidenciais, o romance não é grande coisa. É um livro interessante e corajoso, mas é também o que podemos chamar de uma obra superestimada.
DESTINOS E FÚRIAS | Lauren Groff
Editora: Intrínseca;
Tradução: Adalgisa Campos da Silva;
Tamanho: 368 págs.;
Lançamento: Maio, 2016.