Lançado na Itália em 2002, Dias de Abandono (Biblioteca Azul, 2016; tradução de Francesca Cricelli) pode parecer um romance meio díspar na bibliografia constituída por Elena Ferrante. Da mesma forma que na cultuada tetralogia napolitana, estamos aqui diante de um livro que prende até o fim a partir de uma leitura fluida, e que deixa claro que a complexidade do livro está menos na forma e mais no que está nas entrelinhas.
Entretanto, a obra parece diferir um pouco das demais, já que ela nos prende por meio de uma narrativa permeada de dor, raiva e (talvez) loucura. Dias de Abandono adentra no inferno que uma mulher começa a encarar depois que seu marido, sem razões evidentes, anuncia que não quer mais ser casado com ela e que irá embora de casa.
Olga tem 38 anos e dois filhos. Quando Mario resolve partir, é como se um abismo abrisse em sua frente, e a vida tal como ela conhece até então começa a ser engolida por esse buraco de maneira frenética. Ela se vê tomada pela raiva (é uma obra repleta de palavrões) mas, mais que isso, ela passa a se tornar outra pessoa. Ou ao menos ter contato com um lado seu até então desconhecido.
A derrocada é evidente, e esta mulher não para de cair. Enquanto se questiona sobre toda a sua vida, sobre a existência ou não do amor na relação pregressa com o marido, vemos que o inferno interior começa a estender seus braços para a vida prática. Olga se torna negligente com os filhos e com o cachorro da família, e começa a se tornar cada vez mais agressiva e lasciva, ainda que motivada pela dor, e não pelo prazer.
A chave de Dias de Abandono é entender a vida desta mulher enquanto linguagem. Escreve Olga: “passei do uso de uma linguagem elegante, atenta a não ferir o próximo, a um modo de me expressar sempre sarcástico, interrompido por risadas desmedidas. Devagar, apesar da minha resistência, cedi à linguagem obscena”. A obscenidade de sua fala é uma extensão do ódio que a consome.
A linguagem como ação e reação
Esta é uma obra em que a linguagem opera como foco da ação. É como se mergulhássemos no interior de Olga por meio do contato não-editado com o que ela pensa e fala. Suas palavras agressivas e violentas funcionam como uma espécie de “filtro” narrativo que esconde o que de fato possa estar acontecendo naquela situação específica.
O jogo apresentado por Elena Ferrante é acompanhar, como espectador externo, o autoengano estabelecido por Olga, que não reconhece o que de fato está sendo abandonado aqui. O marido a abandona, e ela sente falta de algo que acreditava ter, e então perdeu. Enquanto isso, não consegue reconhecer que seu abandono é, na verdade, interior.
O jogo apresentado por Elena Ferrante é acompanhar, como espectador externo, o autoengano estabelecido por Olga, que não reconhece o que de fato está sendo abandonado aqui.
A agressividade enquanto mola propulsora da ação é também um tema discutido, sobretudo no que tange às mulheres, culturalmente consideradas mais dóceis e conciliadoras. A violência feminina – Elena Ferrante parece nos dizer – costuma ser menosprezada. Em certo momento, Olga, que está tomada por um ódio que resvala para o físico, escreve: “uma mulher pode facilmente matar alguém na rua, no meio da multidão, pode fazê-lo com mais facilidade que um homem. Sua violência parece um jogo, uma paródia, um uso inadequado e um pouco ridículo da determinação masculina de fazer o mal”.
Da mesma forma, Dias de Abandono discute, de maneira muito perspicaz, as visões de mundo fundamentadas no machismo e que são vigentes ainda hoje, quando se entende que uma mulher sem um homem do lado é menos importante que outra. Olga se espelha numa figura de sua infância, a que chamava de “Mulher Abandonada”, e parece repetir o mesmo destino da vizinha que enlouqueceu após a separação.
Mas a riqueza aqui é notar aos poucos a personagem tomando ciência da artificialidade destas situações. Ela diz: “consumimos e perdemos a vida porque um qualquer, em tempos longínquos, por vontade de descarregar o pau dentro de nós, foi gentil, nos escolheu entre as mulheres (…). Amamos sua vontade de trepar, sentimo-nos tão cegas a ponto de pensar que seja a vontade de trepar conosco, só conosco”.
É inevitável a identificação por qualquer mulher que já tenha se sentido abandonada. Por isso, a sacada final de Dias de Abandono são os rumos que vão sendo percorridos por Olga após esta descida ao inferno. Uma obra menor, mas uma Elena Ferrante que certamente merece ser lida.
DIAS DE ABANDONO | Elena Ferrante
Editora: Biblioteca Azul;
Tradução: Francesca Cricelli;
Tamanho: 184 págs.;
Lançamento: Junho, 2016.
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