Desde dezembro, pouco antes do Natal, estou vivendo um relacionamento sério, intenso, com a escritora italiana Elena Ferrante. Quase todos os dias, reservo algumas horas diárias, de preferência à tarde, para mergulhar nos quatro livros de sua série napolitana, iniciada em 2011 com a publicação do primeiro volume, A Amiga Genial.
Fenômeno internacional da literatura, Ferrante tem uma particularidade: ninguém sabe ao certo quem ela é. Nunca foi vista ou fotografada. Há hipóteses em relação a sua verdadeira identidade, mas não vou discuti-las aqui. Meu enamoramento por ela, por sua prosa sensível, envolvente e perturbadora, dispensa um rosto, uma biografia. Não peço nada em troca, a não ser sua escrita.
Levei anos para me aproximar de Elena. Desconfio de autores que se tornam moda. Tenho a sensação de que, quando todos falam muito de um livro, ou de um escritor, acabamos sendo contaminados por esses paratextos, sejam eles resenhas ou comentários não profissionais. Confesso, no entanto, que, sim, fui influenciado pelo entusiasmo da crítica em relação à escrita da italiana.
Levei anos para me aproximar de Elena. Desconfio de autores que se tornam moda. Tenho a sensação de que, quando todos falam muito de um livro, ou de um escritor, acabamos sendo contaminados por esses paratextos, sejam eles resenhas ou comentários não profissionais. Confesso, no entanto, que, sim, fui influenciado pelo entusiasmo da crítica em relação à escrita da italiana.
A tetralogia de Ferrante é um mergulho na subjetividade feminina, e me intrigou a empolgação com que críticos homens que conheço mais de perto falam de sua escrita. Percebo em suas resenhas e falas, à medida em que os romances de Elena vêm sendo publicados no Brasil, mais do que uma empolgação profissional e, portanto, de ordem racional. Nas entrelinhas dessas críticas e comentários, vislumbrei encantamento. E eu quis ver isso mais de perto.
A série iniciada com A Amiga Genial, também transformada em série televisiva pela HBO (que ainda não tive coragem de assistir), gira em torno da amizade de toda uma vida entre duas mulheres, Elena (seriam os livros autobiográficos?) e Raffaella, nomes de batismo de Lena e Lila. No primeiro volume, a autora nos conduz em uma fascinante jornada pela infância e adolescência das personagens em um bairro pobre e operário da periferia de Nápoles, maior cidade do sul da Itália.
Como a família de meu avô materno veio justamente dessa região, fiquei especialmente tentado a quebrar minha resistência e enfrentar as mais de 1.500 páginas da quadrilogia (tenho lido uma média de 50 páginas por dia), para tentar compreender melhor esse imaginário que herdei em meu DNA afetivo e, de alguma forma, em mim também circula. As protagonistas são primeiro meninas, depois adolescentes e, por fim, mulheres muito diferentes, quase opostas entre si, e ambas lembram minha mãe, Maria Galdi (seu nome de solteira) descendente de imigrantes da região da Campânia e, por sua vez, também uma mulher complexa.
Lena, filha de um funcionário público modesto, é estudiosa, sensível, tímida e romântica e, por meio da educação e das letras, vai se descobrindo aos poucos um ser político, uma feminista. Lila, filha e irmã de um sapateiro, é o que o escritor argentino Júlio Cortázar chamaria de “cronópio”, ser imaginário por ele criado: algo antissocial, é única, forte, inteligente, intempestiva. A despeito disso, ela, ao contrário de Lena, para de estudar muito cedo e se vê engolida pelas escolhas impostas por suas circunstâncias sociais, mas quase nunca sem reagir, ou transgredir.
Há entre as duas uma amizade profunda que atravessa o tempo, a partir da década de 1960. Não é, todavia, um relacionamento puro, idealizado e desprovido de altos e baixos. Como são muito diferentes, por vezes diametralmente opostas, há bocados de ressentimento, de frustração, que se acumulam à cumplicidade e ao afeto que as mantêm amigas ao longo dos anos.
Cada uma a sua maneira, ambas vivem na pele as dores de serem mulheres oriundas da classe trabalhadora em uma sociedade profundamente machista que lhes nega voz e, muitas vezes, oportunidades de ruptura. Lena consegue, em termos, desprender-se desse ciclo por meio da educação, muitas vezes impulsionada por Lila, que sofre literalmente no corpo as consequências de ser diferente, não conformista.
Exímia narradora, Ferrante cria em torno de suas duas heroínas uma extensa teia de personagens, que vão de parentes a professores, de namorados e maridos a amigos, vizinhos e inimigos. A autora constrói um intrincado panorama sociopolítico, mas também afetivo, no qual as trajetórias se entrecruzam no decorrer dos livros, fazendo alusão à tradição melodramática do encontro entre destinos, mas sem a ela se render inconscientemente, e sim a usando para falar de gênero, de desigualdades sociais e de violência, literal e simbólica. Não busque, no entanto, recompensa ou redenção.
Prestes a iniciar a leitura do último volume da série, História da Menina Perdida, me percebo tentado a reduzir o ritmo (quem nunca?) para adiar a despedida de Elena Ferrante neste idílio literário de verão. Mas não resisto ao encantamento.