A capa de Esboço, o romance-sensação que abre a trilogia da escritora canadense Rachel Cusk, é enigmática. O que quer dizer a linda fotografia de uma concha cravada em pé na areia de uma praia? E o que tem a ver com o título “esboço” – um rascunho do quê?
A obra, lançada em 2019 no Brasil pela editora Todavia, é o tipo de livro difícil de escrever explicado. O que, de alguma forma, é um paradoxo, uma vez que este é um romance de estrutura bastante simples, que é lido com muita fluidez. Talvez se possa dizer, de uma maneira que inevitavelmente reduz a obra, que este é um “livro de escuta” (daí a concha acústica na capa?).
Basicamente, Esboço nos coloca na pele de uma escritora que é convidada a dar um curso de escrita criativa em Atenas. Contudo, sua experiência não é o centro aqui. O que nós acompanhamos são as auto fabulações dos tantos personagens com quem ela vai cruzando por seu caminho. O quanto o que eles contam é real – ou, dentro do campo da ficção, verossímil?
Esboço parece existir para nos falar algo sobre a parcialidade de todo relato humano.
Daria ainda para definir esta obra como uma espécie de “romance jornalístico de ficção”, ainda que o conceito seja obviamente apressado e vago. Mas, de fato, há algo em Esboço que flerta com a liberdade e a curiosidade do flâneur e com a bisbilhotice intrínseca do jornalista que “pesca” recortes da vivência alheia para tentar entender algo sobre o mundo.
E aí aos poucos entendemos: pouco importa se os personagens – ou nós mesmos – conseguimos nos aproximar da verdade do que nos aconteceu. Rachel Cusk parece estar interessada é nas ferramentas que utilizamos para nos narrar.
Um romance sobre o amor à escrita
Voltemos então a uma tentativa sempre falha de sinopse. Esboço começa nos apresentando Faye (que só é nomeada ao fim do livro – como se sua própria identidade não importasse muito). Ela está na casa dos quarenta anos, tem dois filhos, e acabou de se separar do marido. No momento em que o livro inicia, ela está dentro de um avião rumo a Atenas, onde ministrará um curso.
Ao lado da escritora, está sentado um corpulento homem grego. Faye começa a conversar com ele. Aparentemente, ela é uma ótima entrevistadora casual, já que o vizinho começa a contar a história da sua vida, passando por três casamentos fracassados, altos e baixos na vida financeira e alguns filhos na conta.
O homem explana sobre a memória da vida com suas companheiras. O casamento com a primeira mulher se encerrou meio por acaso, e ele chega depois à conclusão que foi o melhor relacionamento que já teve. A segunda esposa era lindíssima, mas interesseira, e a terceira, uma mulher tão prática que o casamento acabou por não haver qualquer sentimento.
As questões que tangem todas as narrativas contadas por dezenas de personagens, nos dez capítulos de Esboço, estão de certa forma agrupadas dentro da primeira história: o quanto é possível fabular a nossa própria vida com alguma clareza? Não somos, sem exceção, escritores (mais ou menos talentosos) que tentam criar algum sentido ao caos que nos cerca?
Faye questiona seu interlocutor sobre a sua versão acerca de sua história amorosa: não lhe parece que a primeira esposa possa ter sido tão perfeita nem a segunda tão má. O sujeito concorda, mas isso é pouco revelante. O fato é que Esboço parece existir para nos falar algo sobre a parcialidade de todo relato humano. Somos, possivelmente, eternos esboços em construção, nunca finalizados.
A vida não existe senão dentro daquilo que conseguimos contar. Uma personagem do romance nos diz, em certo momento: “a capacidade humana de se autoiludir é aparentemente infinita – e se for assim, como é que podemos saber, a não ser existindo num estado de pessimismo absoluto, que mais uma vez estamos enganando a nós mesmos?”.
Em uma espécie de meta-texto literário, Esboço nos fala sobre o encantamento possível da escrita e sobre a riqueza dos modos de narrar. Em sua obra tão simples quanto complexa, Rachel Cusk nos presenteia com um romance leve e delicioso, como um amigo que chega em casa por acaso e salva nosso fim de semana do tédio.
ESBOÇO | Rachel Cusk
Editora: Todavia;
Tradução: Fernanda Abreu;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Julho, 2019.
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