A autora Carolina Maria de Jesus entrou para o cânone literário brasileiro por conta de seus diários, descobertos pelo jornalista Audálio Dantas e transformados em relato biográfico na obra Quarto de Despejo. Foi um sucesso estrondoso, e o mundo inteiro quis conferir a crueza presente na pena de uma mulher favelada que descrevia a sua vida.
Só que o que Carolina queria de verdade era escrever ficção. Mas as editoras, encantadas com o relato de uma pessoa pobre escrevendo com talento e vigor, contrariando todas as expectativas, acabaram ignorando os seus planos. Agora a Companhia das Letras recupera a sua obra completa, em um projeto coordenado pela escritora Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina. E o primeiro lançamento é o do romance inédito O Escravo (Companhia das Letras, 2023), escrito por ela na década de 1950.
Para decifrar esta obra (que preserva a escrita original de Carolina, sem qualquer tipo de correção), é essencial acompanhar o prefácio (da pesquisadora Denise Carrascosa) mas sobretudo o posfácio de Fernanda Silva e Sousa. Ambos os textos nos trazem elementos importantes para poder contextualizar O Escravo em sua época, nas condições sociohistóricas da autora e nas pretensões da escritora ao narrar essa história.
Afinal, se não há qualquer estranhamento de que autoras e autores brancos criem personagens pretos, o oposto não é verdadeiro. Por isso, é preciso compreender que Carolina Maria de Jesus, ao não esclarecer questões raciais em O Escravo, deixa a entender, pela ausência de marcação, que seja uma história sobre brancos.
A escravidão para além da classe social

O que Carolina queria de verdade era escrever ficção. Mas as editoras, encantadas com o relato de uma pessoa pobre escrevendo com talento e vigor, contrariando todas as expectativas, acabaram ignorando os seus planos.
Tudo isso é importante, pois nos ajuda a entender a maturidade da proposta ofertada pela autora neste romance. Ainda que o título aponte a uma pessoa, o que compreendemos na leitura do romance é que praticamente todos os personagens são escravos, pois estão acorrentados a alguma coisa.
A obra fala inicialmente sobre dois lados de uma mesma família: uma é abastada, e outra é bastante simples. Ocorre que dois jovens se apaixonam. Renato, do lado rico, se encanta pela prima Rosa, com condições familiares bem mais precárias, e que retribui o seu afeto. Embora se amem, eles enfrentam a oposição da mãe de Renato, uma senhora arrogante chamada Maria Emília, que fará de tudo para que ele se case com uma moça de sua escolha, a pianista Marina.
Ao constatar que todos estão presos à condição de classe, Carolina foge de um relato simples maniqueísta que colocaria Maria Emília como a vilã da história. Aos poucos, descobrimos que os personagens sofrem por estarem limitados por alguma coisa que tolhe a sua liberdade: seu marido, Roberto, arrepende-se por ter se enquadrado na crença de que deveria casar com uma mulher “distinta”. Rosa e Renato sofrem as consequências de desejar aquilo que não podem ter. E a própria Maria Emília vai descobrindo que suas expectativas tinham raízes pouco sólidas.
Em meio à história, a escritora vai tecendo suas considerações a partir de imagens e frases fortes que impactam e surpreendem, tendo em vista seu background marcado pela necessidade dos insumos mais básicos. Estes trechos esclarecem sua origem e sua visão determinada por sua história de vida: “um pobre que quer competir-se com um rico, leva desvantagem em tudo. Pobre, é para andar no primeiro degrau da vida – e os ricos no segundo”.
Obviamente, O Escravo não causa o mesmo impacto que Quarto de Despejo, mas consegue nos revelar uma autora talentosa que certamente teria produzido muito mais – e obras superiores – caso tivesse nascido sob outras condições.
Mas talvez essa seja uma verdade que só pode ser descoberta a posteriori, ao considerar o rumo que a vida de Carolina tomou, mesmo depois de conhecer alguma fama. Como ela mesma escreve neste romance: “ninguém sabe refletir antes do erro. O Erro, é um professôr que esclareçe todos os angulos”.
O ESCRAVO | Carolina Maria de Jesus
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2023.
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