No primeiro capítulo de Estou Feliz Que Minha Mãe Morreu (nVersos, 2022), acompanhamos uma triste cena familiar. Quatro irmãos estão reunidos em torno do leito da mãe, que está à beira da morte. Eles não têm certeza se ela os ouve ou não. A filha mais jovem – a atriz teen Jennette McCurdy, que adquiriu fama mundial após conquistar um papel em I-Carly, da Nickelodeon – resolve fazer um teste. Ela compartilha com a mãe a notícia de que acaba de atingir 40 quilos, o peso que ela queria que a filha tivesse. Se a mãe não manifestar consciência depois disso, nada mais o fará.
A cena é importante porque nos dá a perfeita noção do que está presente neste livro de memórias de Jennette McCurdy: um relato sobre um histórico de abuso familiar e profissional que acometeu uma estrela infantil que entrou para a indústria de entretenimento, menos por opção e mais por convencimento da mãe. Mas há também uma informação importante neste trecho: a de que estamos diante é uma obra espirituosa, carregada de um humor leve, que nem todo mundo conseguiria agregar a uma história de trauma.
Por isso, não é de se estranhar o sucesso editorial de Estou Feliz Que Minha Mãe Morreu, uma vez que ele traz um elemento crucial na literatura sobre celebridades: a espiadinha num passado podre e cheio de excessos que parece satisfazer a nossa inveja inerente em relação à vida dos mais poderosos.
McCurdy, no entanto, tem como diferencial uma postura cética e mesmo combativa em relação à indústria onde trabalhou por cerca de 20 anos. Assumindo-se hoje como “ex-atriz”, ela deixa claro que nunca gostou do ofício e que a único aspecto positivo trazido por esse sonho (que era da sua mãe, e não dela) foi a conquista da estabilidade financeira. No resto, o que sobrou foram apenas danos e uma infância perdida que não volta mais.
A infância com uma mãe narcisista
Talvez o segredo do livro de Jennette McCurdy esteja exatamente no título: com a mãe morta, ela se sente livre finalmente para contar a todos uma trajetória de convivência com a progenitora narcisista.
A grande riqueza da obra de Jennette McCurdy parece ser a clareza e a sobriedade com que ela analisa a própria história. Com isto, quero dizer que este não é o relato de uma vítima – ao menos, não no sentido tradicional. De alguma forma, a consciência da atriz para que pudesse sair de um papel passivo é uma conquista que ela adquire e que, de certa forma, também é consequência do abuso que ela sofreu por anos.
Filha de uma família mórmon pobre no interior da Califórnia, Jennette foi educada pela mãe em casa, sem ter muita convivência com outras crianças além dos irmãos. Vivia cercada de moralismo numa casa repleta de lixo (a família era acumuladora) e coordenada por rédeas curtas pela mãe, Debra, que tratava o pai como uma espécie de paspalho que não servia para nada.
A centralidade de Debra na família acaba consolidando sentimentos dúbios entre mãe e filha. Jennette, tal como toda criança, cresce vendo a mãe como um modelo de beleza e moral, e enxergando a ligação entre as duas como algo fundamental em sua vida, como uma grande bênção que recebeu. As situações abusivas – como os “exames ginecológicos” feitos por Debra até ela ter 17 anos (a mãe teve câncer de mama e sempre lembrava a família do fato); o temperamento explosivo, já que Debra a xinga sempre que dá na telha; a “alfabetização” dada à filha para que ela aprendesse a ter comportamentos anoréxicos – foram entendidas, muitas vezes, como provas de amor.
Estou Feliz Que Minha Mãe Morreu também tem como trunfo o fato de que acompanha a visão de Jennette conforme sua época de desenvolvimento. Sua infância é narrada a partir do olhar da criança e por meio do resgate dos seus sentimentos à época dos ocorridos. Conforme ela vai crescendo, suas impressões também mudam, e aos poucos ela vai reconhecendo de que foi arrastada para uma vida que não exatamente queria.
Debra enxerga na filha a possibilidade de realizar o seu próprio sonho de ser famosa. Passa então a submeter a menina a uma rotina totalmente dedicada a esse objetivo, com muitas aulas de canto e dança durante a semana, testes que não acabam além de um trabalho hercúleo de persuasão feito pela mãe para que Jennette seja abraçada pelos empresários de atores infantis.
Os esforços de Debra dão certo e Jennette vai parar na Nickelodeon. Mas não sem consequências: a jovem atriz “herda” os distúrbios alimentares da mãe e passa a manifestar a anorexia e a bulimia, em episódios que são narrados com uma admirável crueza por uma escritora corajosa. Ao ser elogiada o tempo pela mãe pelo seu corpo magro e pequeno, ela começa a passar fome para retardar a chegada da puberdade e, assim, deixar finalmente de ser criança.
É possível ser brutalmente sincero desta forma e ter que aguentar o rojão estourado pela exposição dessas memórias? Talvez o segredo do livro de Jennette McCurdy esteja exatamente no título: com a mãe morta, ela se sente livre finalmente para contar a todos uma trajetória de convivência com a progenitora narcisista. De quebra, ela ajuda a trazer algum tipo de noção para os milhares de adolescentes que planejam em se tornar uma estrela adolescente, sem pensar nos custos disso.
Se Hollywood perdeu uma atriz de relativo talento, dá para dizer, por fim, que o mundo parece ter ganhado uma boa escritora.
ESTOU FELIZ QUE MINHA MÃE MORREU | Jennette McCurdy
Editora: nVersos;
Tradução: Soraya Borges de Freitas;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Novembro, 2022.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.