“A primeira decepção que eu dei à mãe foi meu nome. A única vez que o pai insistiu em falar mais alto. Quis um nome fácil para ajudar na alfabetização. A vó ficou para morrer de desgosto. A mãe fez novena para pedir perdão a Deus por um nome de filha tão mundano, um símbolo do pecado. Tereza, Francisca e Rita era o que ela tinha em mente”.
O trecho, que está nas primeiras páginas de Eva, romance da escritora mineira Nara Vidal, resume bem a história contada aqui: a de uma filha que se destroça após a morte da mãe, com quem sempre teve uma relação complexa e danosa.
Por um lado, a mãe protetora, cuja ausência faz com o que mundo pareça deixar de existir; por outro, a figura autoritária, que sentenciou à filha a maldição de ter o diabo no corpo por ter sido batizada com o nome da primeira pecadora da história.
O pequeno livro de Nara Vidal não é uma obra fácil. É uma narrativa fragmentada, construída em primeira pessoa, em que a vida e as memórias de Eva se misturam aos seus devaneios.
Trata-se de uma mulher a quem restou uma existência marcada pelo trauma. Desde pequena, a sexualidade da menina foi condenada pela mãe e pela avó como uma marca de sua identidade, conjugada pelo seu nome de batismo. Por isso, as saias curtas de Eva e as blusas transparentes foram tratadas com idas à benzedeira e promessas para que o diabo saísse dela.
Ao explorar esta personagem trágica, Nara Vidal faz considerações sobre as consequências daquilo que Eva – e qualquer outra pessoa – passou em sua vida.
Mas não deu certo, e Eva parte para uma vida um tanto errante, quase como confirmando o destino traçado a ela pela mãe. Quando se casa, não consegue deixar de trair o marido, que a abandona e fica com o filho. A Eva, resta um apartamentinho miserável para que a mãe do filho dele não morasse na rua.
Mas a verdade é que a mãe morta – que aparece no livro por meio das cartas que a filha lê obsessivamente – habita um espaço entre a protetora e a abusiva. Amor e violência se misturam na mente desta mulher, que já não sabe distinguir as duas coisas. Deixar o filho e desejar esquecê-lo, portanto, é uma maneira de tentar fazer o melhor para ele.
Mesmo adulta, Eva parece eternamente atrelada à figura da filha desprotegida e esmagada pela mãe poderosa. Quando a mãe falta, então, a filha perde todos os seus referenciais e flerta cada vez mais com a morte.
Ela escreve: “a mãe era tão grande que encontrar minha cama desfeita, nua de seus cuidados, era o mesmo que ter de abrir a porta para a morte, lhe servir café, conversar com ela e seu hálito podre. Ela não ia embora. Trazia aquela má notícia da ausência completa e definitiva da mãe toda vez que eu procurava fronha para os travesseiros”.
‘Eva’: as consequências do abuso
De certa maneira, Eva faz um estudo sobre quais os efeitos do abuso na vida de uma mulher. Embora a mãe, na história, tenha sido abusiva psicologicamente, Eva também sofreu nas mãos dos homens com quem se relacionou – e tal como a família, também julgaram sua sexualidade, mas de forma agressiva.
No presente – tempo em que se passa o livro, mas sempre intercalado com a recapitulação de suas memórias –, a mulher é uma professora particular sem alunos, presa numa casa sem sustento e com fome. Ela recebe visitas imaginárias de mulheres carecas e desdentadas que a atormentam e não ouve o telefone tocar, embora os vizinhos reclamem.
Enquanto isso, ela espia uma outra mulher que semanalmente vai até a floricultura situada embaixo do seu apartamento e que faz com que sua casa sempre cheire a morte. Ela compra cravos para levar até a mãe, no cemitério. E a mulher dos cravos acaba se tornando uma espécie de obsessão, como um espelho posto à sua frente para assegurar a Eva que ela existe.
Ao explorar esta personagem trágica, Nara Vidal faz considerações sobre as “heranças” deixadas por aquilo que Eva – mas poderia ser qualquer outra pessoa – passou em sua vida. E uma delas é a dificuldade em reconhecer o próprio desejo, culminando em uma insatisfação incurável.
Escreve a autora: “o que se deseja está sempre longe. O amor é tão caprichoso que rejeita a satisfação. Quer vê-la distante. Saciado o desejo, finda o amor e toma seu lugar a convivência”.
A Eva, só resta a loucura, a única libertação possível. “A loucura é a liberdade mais próxima àquela da morte”, declara a mulher criada por Nara Leão neste romance potente e incômodo.
EVA | Nara Vidal
Editora: Todavia;
Tamanho: 112 págs.;
Lançamento: Abril, 2022.
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