Ainda pouco conhecida no Brasil, a escritora e jornalista Selva Almada é, talvez, uma das vozes mais marcantes na literatura feminina atual. Sua prosa tem um tom intimista, algo sussurrante, e que impressiona justamente pela capacidade de nos levar aos locais em que Selva cresceu, nos bucólicos cenários do interior da Argentina. Essa já era a impressão causada por seu romance O vento que arrasa, um pequeno grande livro publicado em 2015 pela Cosac Naify.
Se a estreia de Selva Almada no Brasil se deu de forma meio tímida, ela serviu para consolidar o terreno para o lançamento do esperado Garotas Mortas (Todavia, 2018),um livro de não-ficção que discute o feminicídio a partir do assassinato de três adolescentes argentinas pobres: Andrea Dunni, Maria Luísa Quevedo e Sarita Mundin.
Os casos derivam de três histórias que impactaram a infância de Selva, permeando os rumores assustadores que ouvia em casa, na família e que, em suma, ecoavam uma mesma ideia: a vida de uma mulher (ainda mais numa cidade interiorana, em plenos anos 80, em localidades em que todo mundo conhece todo mundo) vale muito pouco, quase nada. Vale menos quando ela não é “bela, recatada e do lar”, e menos ainda quando ela é pobre.
Sendo assim, o livro parte das três garotas mortas não para investigar as razões de seus assassinatos, nem para achar culpados, nem para discutir a morosidade do processo policial. Neste sentido, Garotas Mortas se categoriza melhor como obra de não-ficção do que necessariamente como um livro reportagem.
Ainda que haja esforço de uma repórter em busca de respostas, Selva Almada parece estar mais interessada em explicitar o processo de garimpagem de informações (do qual deriva pouquíssimas informações úteis), fazendo com que o leitor sinta a mesma frustração que ela, uma jovem jornalista mulher, sentiu ao tentar entender fatos que ficaram restritos às esquinas do esquecimento.
Selva Almada rememora os riscos que correu ao pegar muitas caronas com caminhoneiros, e das incontáveis situações de desconforto pelas quais passou durante a vida.
De fato, Selva volta seus esforços para revelar os encontros destas três histórias: Andrea, que foi apunhalada no peito enquanto dormia, em sua própria cama, ao lado do quarto dos pais, que não ouviram nada; Sarita, que tinha um amante mais velho, e simplesmente desapareceu do mundo; e Maria Luísa, que foi estuprada e teve o corpo abandonado em um terreno baldio.
São três retratos possíveis – dentre tantos outros – das violências que acometem as mulheres e que, por muito tempo, foram encaradas como condições inerentes à sua existência (no sentido de que era tido como “natural” que as mulheres estivessem mais suscetíveis a assédios, cantadas, passadas de mão, olhares violadores, etc.)
E ainda que talvez não tenhamos aqui um tratado sobre as faces do feminicídio, a obra nos arrebata exatamente pelas estratégias narrativas empregadas por Selva Almada, que faz com que todas as histórias atravessem a sua: ela mesma, uma adolescente argentina que já esteve na beirada de muitas violências.
Em certos momentos, Selva rememora os riscos que correu ao pegar muitas caronas com caminhoneiros, e das incontáveis situações de desconforto pelas quais passou durante a vida. É quase como se dissesse: aconteceu com estas três garotas mortas, mas poderia ter sido comigo e com você.
Para além da pertinência da temática, destacaria justamente o lirismo da escrita de Selva, algo já comprovado em O vento que arrasa: ela tem uma grande qualidade de conseguir nos levar para o momento em que a história se passa, como nós mesmos estivéssemos vivenciando aqueles ares no interior da Argentina.
A trajetória percorrida pela escrita atrás de pistas, de alguma forma, fala muito sobre a sua memória afetiva: Selva lembra dos conselhos da avó, dos curandeiros que benziam as crianças, do medo que os adultos incutiam nos filhos em relação aos ciganos. Em sua investigação, inclusive, ela chega a consultar as cartas do tarot para tentar “ouvir” as mortas. Ler Selva Almada, no fim das contas, traz uma sensação de voltar para casa.
GAROTAS MORTAS | Selva Almada
Editora: Todavia;
Tradução: Sergio Molina;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Maio, 2018.
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