As novelas são, muito provavelmente, o mais popular produto cultural brasileiro. Talvez por isso mesmo, elas sempre foram compreendidas como obras menores, uma vez que são criadas para dialogar com as massas. Mas houve uma exceção: as novelas escritas por Gilberto Braga foram decodificadas pela crítica e pelo público como muito acima da média. E o que será que havia de tão especial no texto deste autor?
Em Gilberto Braga – O Balzac da Globo (Editora Intrínseca, 2024), o jornalista e escritor Maurício Stycer mergulha na história deste criador de novelas e séries que, mesmo com obras mais irregulares ou menos aceitas pela audiência, acabou legando ao país tramas cultuadas até hoje, como as de Vale Tudo (1988), Dancin’ Days (1978), Anos Rebeldes (1992) e Celebridade (2003).
No livro, Stycer mergulha na trajetória de um rapaz de classe média baixa que, desde pequeno, interessou-se por teatro, literatura e cinema. Ao devorar os clássicos, Gilberto Tumscitz (ele só adotaria o Braga depois de adulto) foi se atentando às minúcias da construção de narrativas, mas também aos detalhes simbólicos que bem representam a vida dos ricos – daí a proximidade com Balzac, que era expressa pelo próprio autor, em reverência à influência que o mestre francês do realismo social teve em sua obra.
Para além do legado dos grandes escritores, Stycer revela, em O Balzac da Globo, que momentos da vida pessoal de Gilberto Braga pode ter trazido o estofo para os personagens marcantes que criou. Entre eles, estão um assassinato e um suicídio na sua família, além de mudanças de bairro e uma vida escolar errante.
Gilberto Braga: uma obra sólida construída para a televisão
A obra de Gilberto Braga, marcada por reconhecimento, vários sucessos e alguns fracassos, deixa claro que as novelas refletem o Brasil na mesma medida que precisam refleti-lo para conquistarem o público.
Gilberto Braga – O Balzac da Globo consegue iluminar muitos aspectos da obra construída por um autor que conseguiu ir contra ao senso comum que reconhece as novelas como obras descartáveis, direcionadas a um público alienado. Pelo contrário: as tramas criadas por Gilberto Braga são até hoje debatidas com entusiasmo tanto pelo público quanto pela academia.
Nesta obra, estão presentes personagens inesquecíveis, como a Júlia Matos de Dancin’ Days, a Odete Roitman de Vale Tudo, o Felipe Barreto de O Dono do Mundo e a Bebel de Paraíso Tropical. Todos eles serviram para expor debates acerca de valores – consolidados ou contextuais – em voga no Brasil de sua época.
De acordo com a análise feita por Maurício Stycer, o sucesso das novelas de Braga se deu pela coincidência entre as histórias e o espírito presente no tempo em que elas foram veiculadas. Vale Tudo, por exemplo, que discutia a honestidade no Brasil, foi ao ar em 1988, em um momento que prenunciava uma forte crise política que culminaria em 1992 na queda do então presidente Fernando Collor, o primeiro eleito desde a abertura política.
Mas além da riqueza das tramas elaboradas por Gilberto Braga, há também algo de mágico em sua trajetória particular, que se explicita quando notamos que várias pessoas (como Daniel Filho, Boni, Janete Clair) foram cruzando em seu caminho e lhe dando oportunidades, embora ele não tivesse nascido em berço de ouro – em oposição à boa parte dos personagens que retratou. Ao reunir sua origem mais humilde com a realidade dos muito ricos, Braga foi se aperfeiçoando na produção de um retrato incisivo sobre o poder, mas também complexo e algo terno, indo muito além da construção maniqueísta.
Um dos aspectos mais interessantes que Maurício Stycer vai revelando é que o trabalho do autor foi marcado por uma disputa interna entre o popular e o erudito. Embora fosse um homem muito culto, e cujo repertório refletia em sua obra, Gilberto Braga tratava com certo desdém esse suposto dissenso: a que alguém como ele criasse apenas novelas e séries.
O livro conta, por exemplo, que Gilberto ensaiou uma candidatura à Academia Brasileira de Letras, que não foi adiante. Mas em vários depoimentos e textos do autor que foram recuperados por Stycer, fica evidente que ele valorizava o aspecto popular da novela em detrimento ao reconhecimento dos intelectuais. Em uma crítica teatral escrita por Braga, ele registrou: “acontece que a maioria do público – entre a qual confesso me encontrar – não quer ser inteligente. Queremos vibrar, ser envolvidos por um espetáculo que atinja nossa pele, nossos nervos e não apenas nosso pobre cérebro”.
O Balzac da Globo: uma obra coletiva
Nos últimos anos, Maurício Stycer tem se dedicado a contribuir à historiografia da televisão brasileira, ao escrever Topa Tudo Por Dinheiro, que analisa a trajetória profissional de Sílvio Santos, e O Homem do Sapato Branco, em que perfila Jacinto Figueira Júnior, um precursor do chamado “mundo cão” na TV.
Mas, curiosamente, a biografia de Gilberto Braga entrou na sua história por acidente. Quem estava produzindo o livro era o jornalista Artur Xexéo, que faleceu inesperadamente em junho de 2021. Ele já fazia a apuração do livro e havia gravado 14 horas de entrevista com Gilberto Braga.
Foi o próprio Gilberto que sugeriu o nome de Maurício para dar continuidade ao projeto. Mas o destino interferiu mais uma vez: em outubro do mesmo ano, o novelista faleceu precocemente. O trabalho então seguiu a partir do que já estava em andamento com Xexéo, além de muita pesquisa e entrevistas com pessoas do entorno de Gilberto Braga.
O resultado é uma obra riquíssima, que traz detalhes do processo de construção das novelas e de que modo esse tipo de produto, por mais que envolva rotinas industriais, vai muito além de uma fórmula controlável.
A obra de Gilberto Braga, marcada por reconhecimento, vários sucessos e alguns fracassos, deixa claro que as novelas refletem o Brasil na mesma medida que precisam refleti-lo para conquistarem o público. Um livro imperdível não apenas para os fãs do autor, mas para todos os estudiosos ou interessados no gênero.
GILBERTO BRAGA – O BALZAC DA GLOBO | Artur Xexéo e Maurício Stycer
Editora: Intrínseca;
Tamanho: 352 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2024.
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