O nome do livro é A Hora da Estrela, novela de tamanho modesto na qual Clarice Lispector abandonou a pose séria e austera de suas fotos, nos sacaneou muito e entregou uma constelação portátil. Nos sacaneou sim, porque, nessa história tão enxuta que mal dura um dia em nossas mãos, ela condensou tudo o que disse e principalmente o que não disse.
Disse indiretamente pelo relato da narradora, alguém que insiste em se esconder, mas sabemos bem que ela está ali, mesmo sem interferir e querer se expor na história, olhando-a de perto e contando suas impressões. Ao mesmo tempo em que a “narradora” se esconde, adiciona um pouco de sua ótica à novela, quase como um personagem ficcional contando a ficção de maneira às vezes próxima dela.
Em A Hora da Estrela, acompanhamos Macabéa, sincera e profundamente ingênua. Talvez um pouco tímida, ela fala pouquíssimo e quando participa de conversas parece ter vergonha de si ou se sentir intimidada no trato com as pessoas. É como se Macabéa quisesse dar um passo além para o mundo e tivesse algo a impedindo, sem ela ter total consciência disso.
É como se Macabéa quisesse dar um passo além para o mundo e tivesse algo a impedindo.
Um exemplo bem simples (e talvez bobo) é o seu namoro. Macabéa admira Olímpico e o considera um grande “sabedor”, e não muda de expressão – palavra que Clarice Lispector cuidadosamente tornou desconhecida para a protagonista dessa novela – nem quando ela foge de um assunto banal:
“- Nessa rádio eles dizem essa coisa de ‘cultura’ e palavras difíceis, por exemplo: o que quer dizer ‘eletrônico’?
Silêncio.
– Eu sei mas não quero dizer.
– Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic-tac. A Rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
– Cultura é cultura – continuou ele emburrado.”.
Macabéa age dessa forma com mais gente, embora converse pouco e igualmente com poucas pessoas. Ao mesmo tempo em que sua ingenuidade incomoda e até irrita, também é fundamental para o romance, porque com suas dúvidas Macabéa também dá espaço para questões além do banal. Numa conversa, ela diz que não se acha muito gente, não se habituou com isso; depois fala que não sabe o que tem dentro do nome, nunca foi importante. Em uma breve lembrança, ela conta que preferia nunca ser chamada a ter um nome que ninguém tem “mas parece que deu certo”. É quase como se Clarice Lispector tivesse posto dúvidas próprias na boca de sua personagem e as disfarçado de propósito nos modos dela. Algumas delas persistem e mesmo em nossa época fica difícil achar um começo de resposta. Deu certo.
A HORA DA ESTRELA | Clarice Lispector
Editora: Rocco;
Tamanho: 88 págs.;
Lançamento: Novembro, 2020 (atual edição).