No meio do caminho, havia uma velha. Essa mulher – que logo adiante descobrimos ter cem anos – carrega dentro de si um mundo de memórias, que hoje se reduzem à existência de uma velha solitária, sem amiga nem marido, e cuja filha mora longe. Mas o que ocorre com tudo o que ela viveu, quando não há mais ninguém para quem contar?
De certo modo, o tema central de Humanos Exemplares, romance da escritora carioca Juliana Leite, é insustentabilidade da história – seja de uma velha, seja de um país inteiro. A mulher, que se chama Natalia, é como se fosse um símbolo, a última remanescente de um passado que se encerra junto com ela, de um Brasil permeado pela ditadura e pela restrição da liberdade. Fatos que, como bem sabemos, podem ser facilmente revisionados como “progresso”, incitando um desejo de uma volta a um passado trágico.
Ainda que a velhice não seja de modo algum um tema pouco visitado na literatura, o romance de Juliana Leite consegue trazer uma abordagem original ao tema. Porque o que temos aqui é um retrato algo amargo, ou pelo menos melancólico, do que ocorre quando se chega ao fim da vida: depende-se cada vez mais das pequenas coisas para obter um pouco de alegria, como os bombons escondidos embaixo da cama e uma dose eventual de Campari.
O pouco que resta aos velhos, como bem escreve Juliana, é a migalha. “Seu maior desejo, vejamos, seria ouvir inesperadamente a campainha, abrir a porta do apartamento e encontrar ali do outro lado um visitante, imagine só, alguém adorável trazendo novidades e rosquinhas de presente”.
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Quem vê esta idosa que mora sozinha já não mais enxerga o que ela escreveu com sua vida. Não há mais testemunhas do seu amor pelo marido Vicente e dos ideais dos dois, enquanto professores de redação e geografia, de promover a educação em uma escola pública, junto aos seus “queridos”, os demais colegas, em uma rotina que se aproximava do sonho. Tudo isto acaba quando algo acontece, não de supetão, mas aos poucos: o clima do país se adensa e um golpe se prenuncia no ar.
Ainda que a velhice não seja de modo algum um tema pouco visitado na literatura, o romance de Juliana Leite consegue trazer uma abordagem original ao tema.
Em pouco tempo, os queridos precisam se dispersar e, em alguns casos, até se esconder para evitar a prisão ou algo pior. E as cenas que narram os meses que Vicente têm que passar recolhido em um porão sujo, tal como um bicho, é um momento alto do romance.
Os impactos da ditadura, portanto, são tratados pela ótica dos que estiveram próximos dos danos incalculáveis causados por ela. O homem que vive como um rato, a mulher que precisa ficar trancada em casa para não dar bandeira, a filha que vivencia tudo isso sem entender bem – o que, no futuro, talvez a faça se sentir como vítima dos pais e querer mudar para outro continente, bem longe dali.
‘Humanos Exemplares’: a parcialidade da memória – e da história

Humanos Exemplares, em si, não é uma expressão muito recorrente no livro de Juliana Leite. O que pode dar margem a várias interpretações possíveis – como, por exemplo, pensar em quem seria um sujeito “exemplar” para testemunhar (e representar) a sua época.
Natalia e Vicente, cujas vidas trilharam um caminho ligado à educação e, por consequência, à ação política, são testemunhas de um Brasil duríssimo, tenso, em que a ameaça da violência pairava no ar a todo instante. Tolhia-se, portanto, a sua possibilidade de serem eles mesmos. A paranoia lhes roubou a espontaneidade.
Para estas vítimas, o trauma se gruda na pele, tornando-se algo permanente: é impossível “desviver” a opressão. Escreve Juliana: “os esconderijos haviam ficado para trás, mas de algum modo permanecia o sentimento de que, em breve, e talvez por um motivo imprevisto, outro esconderijo se mostrasse necessário mais uma vez, como se se esconder fosse uma linguagem da qual não é possível se desvencilhar tão cedo, uma vez aprendida”.
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Mas há também os que olharam a ditadura de longe, os que fugiram de qualquer envolvimento político e aconselharam seus filhos a se afastar da “baderna”. Estes indivíduos não poderiam ser também humanos exemplares? Mas exemplares do quê?
Fica claro aqui que, ao constituir uma rede com múltiplos personagens (alguns, inclusive, poderiam tomar mais páginas do livro), a autora pretende escancarar a parcialidade fundamental da memória – requerendo à história que amarre tantas narrativas em um sentido central.
Em meio a tudo isso, há uma reivindicação da permanência da narrativa individual, por mais falha que ela possa ser. Em determinada página, lemos assim: “de todas as mortes, àquela altura a que mais nos preocupava era a morte dos fatos, dos acontecimentos concretos pertencentes à história. Temíamos que nós e nossas memórias fossemos algo tido como incerto, duvido, registros em que não se podia confiar”.
No meio da ditadura, uma mãe e uma filha

Por fim, um tema não menos relevante no romance é a dinâmica familiar deste trio – mas, mais especificamente pela mãe e pela “filha que mora longe”, que nunca chega a ser nomeada. O afastamento físico – por escolha da filha – nunca é associado a uma grande tragédia, como se os pais tivessem causado algum sofrimento óbvio a ela, como um abuso.
Ao menos não deliberadamente. E aí está a sutileza do enredo constituído por Juliana Leite: o trauma da filha teria sido a opção de seus pais de não permanecerem alheios à luta política? O que descobrimos, contudo, é que essa ausência da mãe na vida da filha (e da filha na vida da mãe) é sempre motivo de sofrimento e culpa. À distancia, a filha tenta conformar-se à ideia de que participa, de que sabe tudo da mãe, embora o conhecimento esteja restrito à superfície do contato telefônico.
A velha, restrita à vida solitária, tenta se rebelar aos cuidados da filha – o que culmina em uma cena engraçada, embora forte, que nos provoca a pensar em um tema que ainda segue um tabu em pleno 2022: a sexualidade dos idosos.
Com uma escrita muito espirituosa e sensível, Humanos Exemplares se encerra de maneira inesperada, porém belíssima, com um capítulo final que permanece na mente do leitor. Encerra-se como um contundente romance que nos invade com a ideia de que a história de cada um é também a história de um país.
HUMANOS EXEMPLARES | Juliana Leite
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 248 págs.;
Lançamento: Julho, 2022.
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