A primeira sensação ao se ler A Infância de Jesus (editora Companhia das Letras, 2013; tradução de José Rubens Siqueira), primeira parte da trilogia do escritor sul-africano J. M. Coetzee, é de estranheza. Estamos aqui diante do estilo límpido e poderoso deste vencedor do prêmio Nobel de Literatura, que nos entregou já obras-primas como Desonra, de 1999. Mas há algo de misterioso que se insinua logo no título do livro.
Isto porque não há uma explicação fácil, mesmo após o fim da leitura, da razão desta obra chamar-se A Infância de Jesus. Contudo, uma das pistas é que toda a história contada aqui tenha algo de parábola. Ela se passa em um contexto que pode remeter a uma utopia socialista, localizada em lugar nenhum que conhecemos. A ação ocorre em Novilla, uma cidade em que todos são imigrantes – entendemos que ninguém nasceu ali, todos vieram de algum ponto do mundo. As memórias de suas vidas em outras terras devem ser apenas esquecidas.
Em Novilla, o idioma falado é o espanhol. Lá, um homem chamado Simón chega ao lado de um menino, David. A eles é determinado esses nomes e suas idades: 45 e 5 anos. Simón, na verdade, não tem relação de sangue com a criança, que supostamente carregava uma carta que falava de sua mãe, mas que se perdeu no navio no qual viajavam. Ele então assume um compromisso de honra: achar uma mãe para este menino.
De fato, o que vamos vendo é que a história vai ser centrada mais em Simón do que em David. Em Novilla, há uma espécie de sistema burocrático que garante um funcionamento estável da sociedade, sem que haja conflitos ou dramas. Os ônibus são de graça, os apartamentos também, cada um recebe um emprego simples que garante sua subsistência, sem excessos. A comida é simples, e basicamente todos se alimentam apenas de pão e legumes. À noite, os trabalhadores podem fazer vários cursos gratuitos, como de Filosofia, o que vai “acomodando” suas inquietações.
Mas Simón não consegue aquietar os seus brios. Ele se incomoda pelo fato de que o seu trabalho (como estivador, carregando grãos) poderia ser feito por uma máquina. Além disso, ele não se conforma com o que entende ser uma vida morna com que todos parecem não se incomodar: a falta de conflitos, o pouco interesse pelo sexo (as prostitutas atuam em Novilla como terapeutas – é preciso marcar horário no centro pelo atendimento), a suposta falta de questionamento sobre por que estão vivos.
Talvez por isso, Simón se apegue à missão que lhe dá sentido: a de achar uma mãe para o menino. Segundo ele, quando olhar para a mulher certa, ele vai saber. É aí que cruza com Inés.
Dilemas filosóficos de um mundo sem peso
É oportuno notar que J. M. Coetzee, tal como em suas obras seminais (como o próprio Desonra), pareça aqui bem menos interessado na ação e na trama, e sim nas reflexões de fundo filosófico que podem vir a surgir de um mundo criado por ele. Em Desonra, por exemplo, a história de David Lurie tem menos a ver com o que acontece com ele e mais com os dilemas incrivelmente profundos que vão surgindo de sua vivência. A Infância de Jesus, por outro lado, traz um pouco mais de “aventura”, mas ainda assim ela é totalmente envolvida pelos dramas criados pelo homem em sua passagem pela terra.
Na metade do livro em diante, a figura do menino David vai adquirindo mais relevância. Depois que Inés (uma mulher virgem – sugerindo aqui alguma analogia com a trindade formada por Jesus, Maria e José, um “não-pai”) aceita tornar-se mãe da criança, as coisas começam a degringolar. Ela é superprotetora, e deseja afastá-lo da vida social. O mistério (da fé?) está sempre em cena: por que Simón entregou David a uma desconhecida?
É oportuno notar que J. M. Coetzee pareça aqui bem menos interessado na ação e na trama, e sim nas reflexões de fundo filosófico que podem vir a surgir de um mundo criado por ele.
Quando o menino passa a ter dificuldades na escola, a solução pensada pela mãe, a mais inflamada nesta terra de pessoas fleumáticas, é tirá-lo de lá. A escola, com seus métodos de ensino homogeneizadores, seria mais uma etapa para essa adequação a um mundo plano. Novamente, passa-se a tangenciar o conflito de fundo desta parábola de fundo moral: o quanto a vida social nos conforta ou simplesmente nos tolhe de nossas potencialidades?
É melhor sofrer em uma existência marcada pelas emoções, ou viver com alguma satisfação uma vida sem peso? São conflitos filosóficos perturbadores que dialogam com a discussão, por exemplo, trazida por Milan Kundera em A insustentável leveza do ser.
Com seu estilo sempre preciso e algo cirúrgico, Coetzee nos apresenta estas reflexões de maneira pungente: “as coisas não têm seu peso devido ali (…). A música que ouvimos não tem peso. Nosso ato sexual não tem peso. A comida que comemos, nossa dieta enfadonha de pão, não tem substância – falta a substancialidade da carne animal, com toda a gravidade do sangue derramado e do sacrifício por trás. Nossas próprias palavras não têm peso, essas palavras do espanhol que não brotam do nosso coração”.
Há mais perguntas que respostas – um Coetzee é sempre um Coetzee. Ao abraçar o mistério como chave de leitura, A Infância de Jesus se torna uma obra enigmática e traz uma sede pelo resto da trilogia.
A INFÂNCIA DE JESUS | J. M. Coetzee
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: José Rubens Siqueira;
Tamanho: 334 págs.;
Lançamento: Junho, 2013.
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