Com Jantar Secreto (2016), Raphael Montes entrega um de seus romances mais ousados e desconcertantes, fundindo thriller psicológico, horror gráfico e crítica social em um enredo que provoca tanto náusea quanto reflexão. O livro tornou-se um best-seller, ultrapassando 100 mil exemplares vendidos, e teve seus direitos adquiridos para adaptação cinematográfica. Mas seu impacto vai além do mercado editorial: é um retrato brutal — e muito atual — de um Brasil voraz, desigual e digitalizado.
A história gira em torno de quatro amigos de Pingo d’Água, cidade fictícia do interior do Paraná, que se mudam para o Rio de Janeiro em busca de ascensão profissional e pessoal. Dante, o narrador, é formado em Administração e se vê, como os demais, em um beco sem saída financeiro e emocional. Quando um dos amigos propõe um “jantar secreto” com carne humana — inicialmente como brincadeira — e o evento atrai atenção de clientes ricos e curiosos, a ideia se transforma em um negócio clandestino e sangrento.
A grande força do romance está não apenas na premissa macabra, mas na forma como Raphael Montes ancora o horror na cultura digital contemporânea. Ao longo da narrativa, o autor insere memes, prints de WhatsApp, postagens em fóruns e e-mails corporativos como parte orgânica da estrutura narrativa. Esses recursos não funcionam como enfeites ou tentativas de modernizar o texto, mas como elementos que aumentam a verossimilhança e dão à história uma textura reconhecível, que aproxima o leitor da lógica hiperconectada do presente.
A grande força do romance está não apenas na premissa macabra, mas na forma como Raphael Montes ancora o horror na cultura digital contemporânea.
A viralização do jantar canibal, por exemplo, se dá por correntes de mensagens e grupos secretos em redes sociais. A crítica ao consumo — tanto literal quanto simbólico — se entrelaça com o funcionamento das plataformas, com a lógica do desejo que se espalha em tempo real, e com a facilidade com que se cria, compartilha e consome o proibido. É uma atualização da violência urbana à la Rubem Fonseca, agora alimentada por cliques, curtidas e emojis.

Dante é um narrador ambíguo, frio e introspectivo, que lembra os protagonistas das histórias de Luiz Alfredo Garcia-Roza — homens urbanos que tentam manter um verniz de normalidade enquanto são corroídos por dentro. Mas, ao contrário dos detetives éticos de Garcia-Roza, Dante está do outro lado da linha: é cúmplice do horror, agente da degradação moral. E a própria linguagem digital usada no livro reforça esse efeito de dessensibilização, como se o leitor também participasse da banalização do horror.
A prosa de Montes é ágil, cortante, cinematográfica — resultado de sua experiência como roteirista. Criador da série Bom Dia, Verônica (Netflix), sucesso de crítica e público, e autor da novela Beleza Fatal, em exibição na HBO Max, ele domina a lógica do suspense seriado, das reviravoltas pontuais, dos ganchos dramáticos. Em Jantar Secreto, cada capítulo parece escrito para ser visualizado: o ritmo é de thriller, mas o conteúdo é puro pesadelo moral.
Mais do que um romance de horror, Jantar Secreto é um diagnóstico perverso do Brasil: uma sociedade que naturaliza a desigualdade, consome tudo — inclusive pessoas — e transforma até o abjeto em espetáculo. Raphael Montes nos serve um banquete sombrio, hiperconectado e indigesto. E nos convida a pensar se, no fundo, não somos todos um pouco canibais.
JANTAR SECRETO | Raphael Montes
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 368 págs.;
Lançamento: Novembro, 2016.
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