O ano é 1982. Mas, na Inglaterra, as coisas estão um pouco diferentes de como lembramos. Margaret Thatcher foi deposta, e um novo primeiro-ministro parece redirecionar os jovens à política. O gênio da matemática Alan Turing está vivo. Os Beatles ainda lançam discos. Mas o mais impactante de tudo: a tecnologia está avançadíssima. As pessoas utilizam internet, mandam e-mails, têm celulares. A inteligência artificial, aliás, está em pleno desenvolvimento e a caminho da popularização – é possível ao cidadão comum adquirir seu próprio robô.
Este é o cenário delineado em Máquinas como eu, livro do inglês Ian McEwan, um dos mais premiados escritores de sua geração. Por mais que tudo pareça conspirar para isso, talvez seja leviano categorizar a obra como ficção científica (o próprio McEwan recusa o rótulo), pois o romance está pouco interessado em fazer um comentário crítico sobre os efeitos da tecnologia. Ao contrário: busca claramente falar sobre o que há de mais humano na máquina, e sobre o que há de mais maquínico no humano (vale lembrar que o nome completo do livro é “Máquinas como eu e gente como vocês”).
Ian McEwan, neste romance envolvente, mais uma vez volta-se a questões éticas e debate sobre as consequências das ações impensadas dos homens. Esta é uma tônica constante nos seus livros: em sua obra-prima, Reparação, discute as reverberações de uma mentira contada por uma criança; no desconhecido O jardim de cimento, fala das tensões morais (é incesto ou não?) no relacionamento entre irmãos órfãos; mais recentemente, em A balada de Adam Henry, aborda a responsabilidade legal de interferir em questões de crença religiosa.
Por isso, ele não pisa em terreno novo. Em Máquinas como eu, McEwan nos mostra um mundo em que os robôs, feito à nossa imagem e semelhança, são uma realidade ao alcance de muitas libras. Charlie, de 32 anos, é um personagem que representa muitos: um homem jovem, formado em Antropologia, sem muitas ambições ou objetivos, que vai levando a vida com pequenos investimentos financeiros que faz via internet. Quando recebe uma herança, tem um ímpeto e usa o dinheiro para adquirir Adão, um robô de última geração. As razões envolvem, no fim das contas, apenas a curiosidade – e mais uma vez, Ian McEwan discorre sobre as possibilidades de que tudo mude a partir de decisões equivocadas.
Charlie está interessado na vizinha acima do seu andar, Miranda, uma estudante de história com dez anos a menos que ele. Enebriado com aquilo que ele imagina ser apaixonar-se, ele quer envolver Miranda em um projeto comum, e aí entra Adão, um terceiro membro deste tripé. Tal como um filho, a ideia é que eles passem a criá-lo (no caso, programá-lo) juntos. No entanto, Adão, como máquina avançadíssima que é, tem a sua própria consciência e logo também acredita estar apaixonado por Miranda. Pode parecer cômico, mas é absolutamente crível: forma-se uma espécie de triângulo amoroso entre Charlie, Miranda e Adão, e ninguém sabe exatamente o que pensar ou como agir.
Embora teça discussões profundas, há sempre um tom de deboche na narrativa constituída por Ian McEwan, pois ele parece nos dizer que, embora soe absurdo, tudo o que ele imagina em Máquinas como eu beira o profético.
Adão – apenas um de muitos Adãos e Evas, seus irmãos e irmãs – é perfeito em vários sentidos: um homem jovem, bonito, profundo conhecedor de Shakespeare, capaz de correr, de se apaixonar (?), de criar e recitar poemas, de fazer todos os serviços domésticos, de investir e ganhar dinheiro na bolsa, de conhecer toda a literatura do mundo e analisá-la. Além disso, ele é capaz de adentrar no arquivo da polícia e investigar os antecedentes criminais de toda a população. Seria Adão um melhor partido que o falho Charlie? Afinal, os sedutores dispositivos tecnológicos, hoje em profusão em nossas vidas, nos servem, de fato, para quê?
Embora teça discussões profundas, há sempre um tom de deboche na narrativa constituída por Ian McEwan, pois ele parece nos dizer que, embora soe absurdo, tudo o que ele imagina em Máquinas como eu beira o profético: como deveríamos encarar a “traição” de nossos parceiros quando o outro é um robô? Nosso ego está preparado para lidar com as máquinas que nós mesmos criamos? Há uma possibilidade de que elas adquiram consciência moral, e que façam julgamentos que busquem a justiça – e, afinal, o que é a justiça, e ela está ao alcance dos robôs?
Em entrevista à Folha de São Paulo, McEwan explicou o comentário que seu livro faz sobre a arrogância humana: “Estamos tentando ser Deus, mas não somos. Essa é nossa forma de colocar nossa própria consciência em um robô e, assim, podermos viver eternamente. É um tema ancestral. Está na história de Jasão e os Argonautas, no Gênesis”, diz o escritor. Nada mais justo, portanto, que essa análise sobre a onipotência que nos acomete surja da mente de um dos maiores escritores de nossa geração.
Máquinas como eu é um livro tenso e delicioso que, mesmo não estando entre as maiores obras deste mestre (colocaria aqui Reparação e Na praia), captura perfeitamente bem o espírito vigente no mundo em que vivemos.
MÁQUINAS COMO EU | Ian McEwan
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Jorio Dauster;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.